Resenha de: The Death Penalty [Pena de morte]*: Vol. I by Jacques Derrida, trad. (ao ing.) Peggy Kamuf, Chicago, 328 pp, £24.50, January, ISBN 9780226144320

“De onde vem essa ideia bizarra, bizarra,” – Jacques Derrida pergunta, lendo Nietzsche sobre a dívida, em Para a Genealogia da Moral. Uma Polêmica (1877),[1] “essa ideia antiga, ancestral, arcaica (uralte), tão, tão profundamente enraizada, ideia talvez indestrutível, de uma possível equivalência entre dano e dor (Schaden e Schmerz)? De onde vem essa estranha hipótese ou pressuposição de equivalência entre duas coisas tão incomensuráveis? O que poderia haver em comum entre um malfeito e um sofrimento?” Para responder, ele aponta que “a origem do objeto legal, e notavelmente da pena legal, é a lei comercial; é a lei do comércio, a dívida, o mercado, a troca entre coisas, corpos e signos monetários, com seu equivalente geral e sua mais-valia, o lucro.”

No primeiro volume de The Death Penalty [Pena de morte (a trad. ao inglês, aqui resenhada)], Derrida considera o jus talionis [a pena de Talião], o princípio de equivalência segundo o qual se estabelece uma relação “entre o crime e a punição, entre o dano e o preço a pagar”. A dívida, em Para a Genealogia da Moral, dá a Nietzsche uma via para compreender como “a consciência da culpa”, a “má consciência”, veio ao mundo.

Antes, já lamentara que “aquela coisa sombria, chamada reflexão”, na qual o self torna-se seu próprio objeto de incansável escrutínio e autopunição. Se alguém quer cumprir uma promessa, é preciso queimar a lembrança ante a vontade, submetê-la – ou se autossubmeter – a um reino de terror, em nome da moralidade, administrar dor a si mesmo para assegurar a continuidade e a calculabilidade de cada um ao longo do tempo. Se é para eu ser moral e manter minhas promessas, recordarei o que prometi e manter-me-ei sempre o mesmo ‘eu’ que primeiro lançou a tal promessa, resistindo a qualquer circunstância que possa mudar a continuidade dele ao longo do tempo, jamais adormecendo quando é indispensável manter-se completamente desperto.

A promessa assume outro significado em Nietzsche, quando o que eu prometi é precisamente pagar uma dívida, promessa que faço e à qual me mantenho ligado por uma determinada espécie de contrato. O que aparentemente queimei ante a vontade, ou queimou-se lá, é uma promessa de lembrar e pagar aquela dívida, cumprir a promessa num período calculável de tempo e assim me tornar criatura calculável. Sou confiável para calcular prazos e para calcular dinheiro para pagar o que devo: essa possibilidade de prestar contas por coisa devida é a promessa. Posso contar comigo mesmo; e outros podem contar comigo. Se me provo capaz de fazer um contrato, então posso receber um empréstimo, e acredita-se que pagarei a dívida e os juros, de modo que o emprestador pode acumular riqueza a partir da minha dívida, de modo previsível. Se eu fracasso, se ‘dou calote’, a lei intervém para proteger o interesse dele, com o interesse (juro) que arranca de mim.

Nietzsche pergunta como dívida e pagamento-de-dívida tornaram-se o contexto primário para que se conceitualizassem criminalidade e sanção. Rastreando a persistência da lei romana na jurisprudência alemã no século 19, Nietzche argumenta que o dano é conceitualizado como uma dívida, e todo o castigo é compreendido como um pagamento. A partir disso, todo o campo do sofrimento é pervasivamente economistizado; e o contrato converte-se em modelo destacado da troca humana. Para Nietzsche, todo e qualquer tipo de dano ou injúria é agora modelado a partir da relação credor-devedor.

Com o dano já concebido como pagamento devido (eventualmente em situação de ‘calote’), a psique desenvolve uma lógica de penitenciária.

A forma psíquica que o pagamento assume é a culpa, entendida como uma espécie de pagamento perpétuo de dívida que jamais é dada por saldada. A sanção se torna uma forma de subjetivação: ao punir o criminoso que infligiu dano/incorreu em dívida, forma-se um sujeito que pune, que castiga [ele/ela] por [ele/ela] ter falhado no dever de ser calculável. Se ele ou ela se tivesse comprovado calculável, não teria acontecido dano algum? Mesmo assim algum dano aconteceria, porque a única via para tornar-se animal comprovável e calculável, segundo Nietzsche, é precisamente se autoinfligir dano/sofrimento, queimando uma lembrança ante a vontade, de tal modo que a lembrança arde outra e outra e outra vez, sempre que a promessa é quebrada, e também sempre que a promessa é cumprida.

A culpa torna-se a modalidade psíquica do devedor que não pode nem romper nem cumprir o contrato. Qual, então, é a modalidade psíquica do credor? Nietzsche comenta aquelas leis romanas que permitiam que o devedor fosse esquartejado pelo credor ou por seus procuradores legais. Derrida continua o pensamento:[2]

“Ao credor é assegurado o reembolso psíquico (…) Em vez de uma coisa, em vez de algo ou alguém, ele recebe algum prazer, algum gozo [jouissance], um sentimento de bem-estar ou de maior bem-estar (Wohlgefuehl), receberá um prazer que consiste no voluptuoso prazer de causar sofrimento ao outro (…) ‘faire le mal pour le plaisir de le faire,’ [fazer o mal pelo prazer de fazê-lo] (…) Em lugar de algum equivalente, algo ou alguém, o credor recebe, como retorno, como pagamento, o prazer de fazer violência (Genuss in der Vergewaltigung).”

E apesar de Derrida aceitar a tradução de Vergewaltigung como ‘violência’ (usualmente, Gewalt), essa é também a palavra em alemão para ‘estupro’, o que levanta o problema de se é possível distinguir em formas sexualizadas e dessexualizadas de destrutividade nas formas do castigo legal. De fato, o movimento para fazer injúria como dívida que exige pagamento produz a culpa e o sadismo: o devedor torna-se o que está perenemente pagando numa situação na qual nada afinal pode ser pago & quitado; o credor está sempre castigando e gozando nessa tarefa aparentemente infinita. A ideia de equivalência, introduzida pela pena de Talião [jus talionis], permite que uma coisa substitua outra por meio do pagamento.

O ponto não parece ser realmente recompor o todo, mas lucrar e punir mais gozosamente por um período indefinido de tempo. Manter suas partes circulando é o que da ao credor seu prazer; e punir dívidas, estabelecendo-as como impagáveis, abre um futuro potencialmente infinito de delícia sádica. A prisão é estabelecida sobre o modelo de dívida social, de modo que ditar a sentença passa a ser um modo de regular e estender, o tempo da dívida.

Para Nietzsche, e nisso Derrida o segue bem de perto, a punição legal, além de servir aos objetivos declarados, mantém uma vocação furtiva na qual o sadismo opera mediante ambos os termos, da lei e da moralidade. Nietzsche descobriu que a crueldade – de fato, ‘crueldade festiva’ – invadiu esses dois domínios. Aparece explicitamente nas reflexões de Bentham sobre o castigo, mas também pode ser encontrada operante numa forma mais sutil no imperativo categórico de Kant, o qual, disse Nietzsche, “fede à [reicht nach] cruedade’. Quando Kant justifica a pena de morte à base do imperativo categórico, demonstra o ponto de vista nietzschiano de que a crueldade pode ser, e é, mascarada como moralidade, e que o prazer de infligir crueldade pode ser, e é, racionalizado como dever moral. Pressagiando Kant avec Sade de Lacan, Nietzsche procura expor a gozosa crueldade da moralidade de Kant. Derrida leva isso um passo adiante, figurando Meursault, o assassino absurdista em O Estrangeiro de Camus, como kantiano paradigmático:

“Se eu sei por que mato, acho que estou certo por matar, e essa razão que dou a mim mesmo é uma razão que qualquer um pode defender racionalmente com a ajuda de princípios universalizáveis. Mato alguém e sei por que, porque acho que é necessário, que é justo, que qualquer outro em meu lugar faria o mesmo, que o outro é culpado em relação a mim, fez-me algum malfeito ou fará e assim por diante… isso posto, o crime é significante, deliberado, calculado premeditado, orientado por um objetivo, pertence à ordem da justiça penal e não é mais dissociável de uma condenação à morte, de um ato propriamente penal. Nesse ponto, a distinção entre vingança e justiça torna-se precária.”

Mas Nietzsche também escreve algo mais, a saber que contratos comerciais são modelo de contrato social, que requer que os humanos passem pela internalização de seus impulsos agressivos. O que é internalizado ou, de fato, reprimido por entrar no contrato social é “hostilidade, crueldade, o gozo de processar, atacar, mudar, destruir.” Essa internalização pode operar como sublimação, dando origem à alma, a todo o mundo interior, à má consciência e à culpa – tudo que torna um homem interessante.

O desenvolvimento dessa capacidade custa preço altíssimo, que alguns chamam de neurose, e que Nietzsche descreve como “doença grave que o homem pode contrair sob o estresse da mais fundamental mudança pela qual jamais passou – aquela mudança que ocorreu quando ele viu-se finalmente fechado entre as paredes da sociedade e da paz”. O contrato social exige que o sujeito renuncie à opção de agir agressivamente e destrutivamente e produza uma formação psíquica na qual o sujeito se autoesmurra e, portanto, expõe-se ao risco de vir a ser seu próprio carrasco executor.

E os que se opõem à pena de morte podem fugir à crueldade? Nietzsche previne que a crueldade bem pode ser primária. Pode ser reprimida, que é um modo para dirigir a crueldade contra si próprio, ou dirigida contra outros em alguma versão moralizada, por exemplo, fazendo preferir a prisão à pena de morte (prolonga-se a ação da crueldade, pode-se dizer, em vez de uma morte imediata). A proibição da ação agressiva é ataque agressivo contra a agressão, o qual paradoxalmente preserva, ou redobra, a agressão, ainda que vise a erradicá-la. Ninguém pode livrar-se dela. “A figura da abolição” – escreve Derrida – “é de uma morte da pena de morte.”
*

Derrida recorre a reflexões de Freud sobre a agressão e à pulsão de morte para perseverar nessa questão mais ampla sobre a crueldade. Além do Princípio do Prazer põe em questão a operação exclusiva do princípio do prazer como princípio que organiza a vida psíquica. Há modos de destrutividade que não podem ser explicados pelo princípio do prazer? A pulsão de morte emerge como modo de explicar as compulsões à repetição que não conseguem estabelecer nenhum tipo de mando [orig.  mastery] sustentável. Aparecem para Freud primeiro como parte da “neurose de guerra” e foram separadas de formas de neurose organizadas pela realização de desejo. Essas formas de repetição compulsiva não buscavam gratificação: eram repetições não desejadas que consumiam o ego. Derrida é franco: “[o que está em questão] é um diagnóstico de uma crueldade que não tem contrário porque é originária.”

Essa inversão dialética característica da má consciência – redobrar a agressão no esforço para estabelecer o oposto dela – prova-se importante para a abordagem de Derrida, da pena de morte e do abolicionismo.

Para Derrida, os que se opõem à pena de morte – como ele – são colhidos no mesmo problema que colhe os que pregam a pena de morte, mas por quê? Os abolicionistas estarão talvez tentando erradicar a pulsão de morte – a “hostilidade à vida”, como diz Derrida, que é “inerente à  própria vida?” Será esse o furtivo propósito deles? “Ultrapassar a crueldade por alguma aparente não crueldade” – ele continua – “seria mero ultrapassamento em crueldade, um excesso, uma superoferta de crueldade”.

Derrida observa que Robespierre mudou de ideia, de opositor a afirmador da pena de morte, no espaço de dois anos, dependendo do que lhe pareceu mais útil – se mais temia pela própria vida ou se mais desejava a morte dos adversários.

Os que se opõem à pena de morte, como Beccaria e às vezes Bentham, parecem preferir uma longa, prolongada forma de prisão cruel, o que leva à pergunta: que campo nesse debate defende a forma mais humana de castigo? Desconfiado de formas de agressão disfarçadas como benevolência, Derrida pergunta se alguns abolicionistas estão comprometidos com outras formas de violência mascaradas sob formulações morais elegantes, diferentes das que racionalizam o prolongamento do tempo da crueldade e o mandato do gozo sádico.

Assim como Nietzsche descobriu que o imperativo categórico de Kant estava encharcado em sangue, assim Freud pensou que o mandamento cristão “ama teu próximo como a ti mesmo” seria de obediência absolutamente impossível. Por que meu vizinho teria de me amar? – pergunta. E por que deveria eu amar meu vizinho? “É muito provável que meu vizinho, se lhe for ordenado que me ame como ele se ama ele mesmo, responderá exatamente  como eu respondi, e me repelirá pelas mesmas razões”. Freud sugere que só podemos realmente amar quem conheçamos, e que é absurdo ordenar que amemos o resto da humanidade: como posição padrão normal, a hostilidade parece posição mais razoável.

O que parece estar em jogo aqui não é nem uma atitude padrão de hostilidade, nem sequer alguma propensão ocasional para a crueldade, mas o problema mais amplo da pulsão de morte. Em Além do Princípio do Prazer e em O Mal-estar da Civilização escrito dez anos depois do primeiro, em 1930, Freud escreve sobre uma espécie de destrutividade que visa a desmantelar formas sociais construídas à base de objetivos sexuais reprimidos, como família, comunidade e nação. Observa em várias ocasiões, em particular quando considera a ambivalência constitutiva do amor, que o princípio de prazer e a pulsão de morte trabalham em conjunto, mas têm de ser distintos, mesmo assim, em termos dos respectivos objetivos finais. Em Além do Princípio do Prazer, Freud faz duas afirmações inversas sobre a relação entre o prazer e a pulsão de morte: primeiro, dá o exemplo do sadismo, no qual a pulsão de morte “é posta a serviço da função sexual”; segundo, poucas páginas adiante, “o princípio do prazer parece realmente servir aos instintos de morte”, que estão “especialmente vigilantes contra aumentos de estimulação de fora, que tornariam mais difícil a tarefa de viver”. Assim, cada um pode estar a serviço do outro, o que significa que nenhum dos dois é necessariamente primário. A pulsão de morte nos encaminha para a morte, num circuito de retorno ao inorgânico que milita contra um senso progressivo do tempo, repetidamente quebrando as relações sociais que construímos, e nos devolvendo a um estado de quiescência. Assim as duas pulsões – ou princípios, se se prefere – parecem reunir-se outra vez nessa quiescência final na qual tudo que é construído é desfeito, espalhado, voltando o ego evanescente a uma condição inorgânica na qual o organismo é aliviado de qualquer excitação.

Sabemos que a civilização produz infelicidade porque normas sociais exigem que não atuemos todos os nossos desejos à procura de gratificação. Idealmente, laços sociais surgidos de desejos inibidos criam comunidades, e a sublimação de desejos imediatos cria arte, instituições ou trabalhos como o de Freud. Mas o outro problema com a civilização é que parece ativamente desmantelar o que ela construiu, destruir o que alguém fez ser, e atacar os que se ama; toma como alvos suas próprias criações e ligações, perseguindo um furtiva vocação – repetitiva, sem saber – que trabalha na direção contrária às suas tarefas orientadas avante e a todos os conceitos de progresso. Freud encerra O Mal-estar na Civilização observando que a civilização corre o risco de ser desfeita por sua própria agressão; e chega ao ponto de manifestar sua ansiedade ante a possibilidade do extermínio.

Uma curta passagem no livro prova-se muito importante para o argumento de Derrida. Freud está escrevendo sobre a pena de morte: “Não podemos deixar de lembrar um incidente ocorrido na Câmara dos Deputados francesa (assumo que nos anos 1790s), quando a pena capital estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a abolição da pena capital e seu discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma voz vinda do plenário exclamou: ‘Que messieurs les assassins commencent!’[3] [Que os senhores assassinos comecem! (NTs)]

É como se a convocação para deixar que os assassinos começassem seu trabalho fosse parte  das paixões incendiadas pelo discurso abolicionista. Serão os abolicionista como campanhistas antipornografia que acabam por excitar seus apoiadores com descrições detalhadas da pornografia que querem erradicar?

O abolicionismo da pena capital tem problema diferente, dado que aqui nem é tanto o desejo, mas a pulsão de morte que se põe, ela mesma, em oposição moral às próprias expressões. Será que a leitura de Derrida sugere que a oposição à pena de morte possa rapidamente ser convertida em seu oposto, desencadeando uma afirmação celebratória da própria destrutividade?

Derrida retoma a crítica de Baudelaire ao abolicionismo de Hugo em O Último Dia de um Condenado (1829)[4] cujo argumento é que se tem de ser contra a pena de morte porque o direito à vida é absoluto. Pregar o fim da pena de morte em defesa de um absoluto direito à vida é, para Baudelaire, como Derrida nos lembra, “duplamente culpado”: é apegar-se à existência animal e abandonar a existência humana. A paixão dos que se opõem à pena de morte é a culpa, observa ele, “porque temem pela própria pele, porque se sentem culpados e seus tremores são confissão, e o abolicionismo é sintoma neles; só querem salvar a própria vida, tremem por si mesmos, porque (…) inconscientemente sentem-se culpados de pecado mortal.” Assim a paixão contra o castigo é articulada pelos que são culpados, não por o que fazem, mas por o que desejam não desejar: livrar-se de alguém. Mas também porque temem perder a própria vida. Então formulam a própria posição, não por princípio, mas por medo de serem liquidados por outro: “Quero abolir a pena de morte, porque tenho medo de ser condenado.” (…)

“Ah, a hipocrisia que anima e agita os defensores de causas justas!”

A posição de Derrida implica que a única via para uma posição abolicionista é mediante a supressão violenta do impulso agressivo, um redobrar da agressão que é hoje promovido e amplificado por instrumentos morais. Mas dado que a agressão pode ser interrompida por orientações mais relacionais, por que a oposição à pena de morte não poderia emergir delas? O princípio do prazer sempre intervém para descarrilhar a agressão, e já observei que, para Freud, a pulsão de morte pode ser posta a serviço do princípio do prazer, e que o prazer pode servir ao objetivo de criar e reproduzir laços sociais. No contexto de laços sociais preservados, agressão pode tornar-se agonismo ou pode ser estritamente contida em regras de um jogo: uma cena sexual sadomasoquista, por exemplo, ou outra atividade de sujeição com regras.

Mas há argumento mais geral a apresentar, sobre a ideia de ambivalência emocional de Freud. Essa ideia aparece desde cedo em suas interpretações de Hamlet em A Interpretação dos Sonhos; merece um capítulo em Totem e Tabu; e é central na explanação da melancolia, em Luto e Melancolia. Depois de 1920, foi refeita como modo de interpenetração do princípio do prazer e da pulsão de morte. Não há superação da ambivalência no amor, porque estamos sempre sob o risco de destruir aquilo a que mais somos ligados, e vulneráveis a ser destruídos por aqueles dos quais mais dependemos. Conforme esse modelo posterior, o Édipo não necessariamente mata o pai para possuir a mãe (implicaria postular a realização do desejo como objetivo final de todos os desejos assassinos); ele pode ser empurrado por vários motivos inconscientes a matar o pai, e a gratificação sexual pode estar, ou não, entre aqueles motivos.

Assim, o problema com a inversão dialética de Derrida é que depende da pulsão de morte, ou de seu principal expoente, a agressão, como único motivo ativo na cena.

Que decisões éticas emergem da situação ambivalente de desejar que alguém morra e, ao mesmo tempo, desejar que viva, e mesmo de desejar as duas coisas com igual intensidade, mas em diferentes níveis de consciência?

Ambivalência não é exatamente o mesmo que hipocrisia.

Sou hipócrita se, ainda que furtivamente, quero que alguém morra, ou sou possuído de desejo assassino ainda que eu oculte aquele desejo num argumento moral, digamos: sou contra a pena de morte. Sou hipócrita só se há desejo de fingir que não tenho o desejo, mas de fato o tenho.

Na condição de ambivalência contudo, há pelo menos dois desejos em operação, dois verdadeiros motivos em luta para coexistir, apesar da incompatibilidade. O que, então, trabalha contra a demanda interna de que alguém pague por um crime com a própria vida? Será que só desejamos que o/a criminoso/a viva quando podemos gozar ao infligir-lhe mais dor? Ou há outras razões pelas quais podemos desejar que ele/ela viva? Há, mesmo em termos de psicanálise, razões para manter o outro vivo e que não dependam primariamente de nosso desejo de continuar a torturar o outro, mesmo que não seja alguém em particular, mas um anônimo, ou qualquer da população em geral?

Para responder essa pergunta, temos de perguntar também se há relações sociais externas aos termos de dívida e pagamento, relações que possam ser compreendidas fora do capital, ou fora dos termos psíquicos e morais pelos quais a injúria-cum-dívida autoriza o encarceramento e a pena de morte.

Isso já é andar, de uma teoria da pulsão, para considerar a racionalidade, mas não significa que se possa dispensar tão facilmente o problema da destrutividade. Afinal, quando Freud põe Eros e Thanatos como dois princípios separados, como pulsões que pertenciam à linguagem figural acessível para ele, está tentando dar conta da ambivalência. Eros pode bem ser definido como o que constrói laços sociais mediante a sublimação, mas o amor – é preciso não esquecer – também é constituído por ambivalência. Esse é precisamente o ponto do qual parte Melanie Klein, sugerindo que a ambivalência de todos os laços humanos é a base de uma demanda ética para preservar precisamente a vida que alguém tenha poder para, e às vezes também interesse em, destruir.

“O poder do amor – que é a manifestação das forças que tendem a preservar vida – ali está, no bebê, como também estão os impulsos destrutivos”, escreve Klein em Amor, Culpa e Reparação.[5] A fantasia de destruição torna-se acoplada ao medo de perder aqueles dos quais se é absolutamente dependente. Executar aquele do qual eu dependo para comida, abrigo e sobrevivência é pôr em risco minha própria existência. O ‘medo de perder’ emerge vezes seguidas em Klein: “Há (…) na mente inconsciente uma tendência a entregar [a mãe], que é contra-atuada pelo desejo urgente de mantê-la para sempre.” Essa forma de ambivalência emerge desenvolvimentalmente como laço emocional quando a individuação não é completa. Mas dado que a individuação jamais é completa, e a dependência jamais realmente superada, emerge um dilema ético mais amplo: como não destruir o outro ou os outros dos quais careço para viver.

Não se trata de calcular que destruí-los seria, provavelmente, má ideia. Em vez disso, se trata de reconhecer que a dependência nos define fundamentalmente: é algo que eu jamais ultrapasso, não importa quanto tempo viva e o quanto possa parecer individualizado. E não é que você e eu sejamos iguais; em vez disso, é que nós invariavelmente tendemos para e sobre um o outro, e é impossível pensar em qualquer um de nós, sem o outro.  Se procuro preservar sua vida, não é só porque é do meu autointeresse fazê-lo, ou porque tenha calculado que essa preservação trará melhores consequências para mim. É porque já estou ligado a você num laço social sem o qual esse “eu” não pode ser pensado.

Assim, que implicações tem para o amor a tese da ambivalência emocional, para que se pensem alternativas à pena de morte e, em termos gerais, à violência legal? Há alguma via pela qual se possa ir além da relação dialética entre o castigo da pena de morte e da prisão perpétua?

*

Acompanhando a “Crítica da Violência” de Benjamin,[6] Derrida desvela a intimidade tóxica entre crime e remédio legal. A lei distingue entre formas legítimas e ilegítimas de pena de morte, estabelecendo os procedimentos pelos quais aquela distinção é feita. Também estabelece os casos nos quais o estado pode infligir violência mortal, seja em guerra seja mediante instrumentos legais como a pena de morte. A pena de morte, para Derrida, considerada como modalidade de violência legal, acaba com a distinção entre justiça e vingança: a justiça passa a ser a forma moralizada que a vingança assume.

Chama a atenção que essa seja visão que se encontra, comum a ambos, em Derrida e na intelectual e ativista Angela Davis. Os dois requereram o rejulgamento ou a libertação imediata de Mumia Abu-Jamal (prisioneiro político condenado à morte em 1982 pelo assassinato de um policial: sua sentença foi convertida em prisão perpétua sem possibilidade de recurso ou perdão em 2012); os dois argumentam que o ‘crime’ de Mumia Abu-Jamal é seu relacionamento com os Panteras Negras. Para Davis, a alternância entre sentença de morte e prisão perpétua é dialética:

Por importante que seja abolir a pena de morte, temos de estar conscientes do modo como a campanha contemporânea contra a pena capital tende a recapitular os próprios padrões históricos que levaram à emergência do emprisionamento como forma dominante de castigo. A pena de morte coexistiu com o emprisionamento, mas supunha-se que o emprisionamento devesse servir como alternativa ao castigo corporal e à pena de morte. Essa é uma grande dicotomia. Engajar-se criticamente com essa dicotomia implica considerar seriamente a possibilidade de conectar a meta de abolir a pena de morte com estratégias para abolir as prisões.

Como Davis, Derrida compreende que a pena de morte e de emprisionamento absolutamente não se opõem, mas são duas modalidades de uma economia da vingança.

Quando o estado mata e justifica que assim faça, ele consuma a vingança mediante seus processos de raciocínio: a violência legal deixa de ser diferente da violência não legal, exceto que, agora, o estado perpetra o ato e oferece a justificativa. Mas para Davis, a tarefa é avançar além da vingança.

Em dado momento, o mentor intelectual de Davis foi Herbert Marcuse, o qual, em Eros e Civilização,[7] no qual se reencontra com O Mal-estar na Civilização, sugere que Eros possa ser expandido para criar formas de comunidade que fariam frente à força de Thanatos, ou à pulsão de morte aumentada sob o capitalismo. Referiu-se ao superávit de agressão gerado sob o capitalismo e sugeriu que Freud estivesse descrevendo uma muito específica organização social da agressão, não uma pulsão pré-social de morte. Para Marcuse, além disso, a energia revolucionária, como tal, teria de ser dirigida contra instituições repressivas, dentre as quais o capitalismo e a família.

Que eu saiba, não há uma teoria das pulsões no trabalho de Davis: a sexualidade e a agressão são socialmente organizadas. Mas, ao mesmo tempo, há uma clara compreensão de que a resistência política tem de fazer as duas coisas: construir e destruir. Não há meio para fugir dessa dupla demanda. Davis clama pela abolição, não só da pena de morte, mas da instituição e da indústria do aprisionamento. Negar instituições violentas e de exploração exige que se use a destrutividade, mas também busca estabelecer e reforças os laços sociais mediante a reparação e a “justiça restaurativa”, não mediante a vingança e a retribuição.

Se permanecemos dentro do problema da relação entre crueldade e pulsão de morte, chega a ser surpreendente o quanto a pulsão de morte – ou a agressão – pode ser plenamente dirigida por programas políticos conscientes, como os que Davis propõe, e nos quais sempre há um excesso de destrutividade que não pode ser controlado nem explicado pela organização social da vida. A pergunta importante aqui parece ser se os laços sociais podem ser compreendidos no quadro da civilização, ou de algum outro modo.

Para Freud, em O Mal-estar na Civilização, a civilização dificilmente nos salvará: a face moral da civilização é, afinal de contas, a vingança; e as prisões são suas instituições-modelo. Em lugar das prisões, Davis imagina comunidades focadas em curar e reparar, em formas de responsabilidade que forjam novos laços sociais, para os que os tenham quebrado. Esses laços seriam explicitadamente anticapitalistas, e poriam fim a formas racistas de exploração.

Davis insiste que nos EUA as duas coisas, as prisões e a pena de morte, têm de ser compreendidas como parte do legado da escravidão, dado que número desproporcional de prisioneiros e de hóspedes dos corredores da morte nos EUA são homens, negros e latinos, já com porcentagem crescente de mulheres negras ou latinas (a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (ing. National Association for the Advancement of Colored People, NAACP) estima que norte-americanos negros “constituam hoje cerca de um milhão, do total de 2,3 milhões da população encarcerada nos EUA. Negros norte-americanos aparecem na proporção de 6 vezes mais que brancos norte-americanos. Somados, norte-americanos negros e de origem hispânica constituem 58% de todos os prisioneiros nos EUA em 2008, apenas de a população de norte-americanos negros e de origem hispânica não passar de ¼ da população dos EUA.”  Em anos recentes, esses números ainda aumentaram. Nos EUA hoje há mais de 3.000 prisioneiros hóspedes de corredores da morte. Todos são pobres. E a maioria deles são norte-americanos negros ou de origem latina.)

Davis argumenta também que o amor e o perdão devam ser buscados, como alternativas a penas para retribuir o crime. Não implica que não haja destrutividade nesse quadro, mas a destrutividade assume a forma de ‘negar’ as prisões, cuja modalidade de destrutividade fere a vida que, em tese, deveria estar sendo reparada e até restaurada para um mundo social mais amplo.

Estaremos aqui realmente nos afastando da pulsão de morte?

E se compreendemos a pulsão de morte não só como manifesta dentro da psique individual, ou em termos de psicologia de grupos, mas como algo que passa a controlar instituições e orienta seus objetivos, uma força com furtiva tenacidade?

Exigir o fim das prisões e das penas de aprisionamento pode não ser possível, ou exequível, mas a exigência estabelece uma perspectiva a partir da qual podemos ver o quanto o ‘remédio’ legal incorpora de crueldade.

Exigir o fim da crueldade é exigir a destruição das instituições da crueldade; a única questão que permanece é se é possível controlar os efeitos destrutivos que adviriam de desinstitucionalizar os criminosos. Fato é que as consequências destrutivas de atos que visam a destruir a destruição não podem ser conhecidas na totalidade, antes.

É aí, talvez, que Freud, que vê a operação inconsciente da pulsão de morte, parece ter a última palavra, indicando um futuro de destruição cujos exatos contornos não conhecemos, e ante o qual só sabemos sentir ansiedade.

Para Davis, o abolicionismo [da pena de morte] refere-se à demanda de que sejam abolidas a pena capital e as prisões, mas também a escravidão, que continua como fenômeno global, ativo não só nos buracos escuros do mundo em desenvolvimento, mas também no trabalho forçado no campo, nos EUA. Prisões são também um legado da escravidão, agindo hoje como o mecanismo institucional pelo qual um número desproporcional de negros são privados da cidadania. O fato de a pena de morte ser desproporcionalmente aplicada a negros implica que aí está um meio para regular a cidadania por outros meios e, no caso da pena de morte, concentrando o poder do estado sobre questões de vida e morte e que afetam diferentemente minorias populacionais. Mas esse poder não é simplesmente ou exclusivamente soberano.

Com a ideia de uma demografia dos condenados, entramos no terreno que Achille Mbembe chamou de “necropolítica” [orig. ‘necropolitics’].[8]

A evidência de que empresas de segurança já assumiram a administração de prisões nos EUA, no Reino Unido e por toda parte, expõe a ligação que há entre quem é propriedade de outrem, quem é posto fora do jogo, cuja dívida social ou econômica já não é pagável e agora define quem deve ser protegido contra a classe criminosa, que produz uma classe de gente cuja vida valeria a pena preservar, e outra, cuja vida pode ser facilmente perdida ou destruída.

O perdão da dívida entra nesse quadro? Qual seria seu equivalente psíquico? Seria talvez a operação do ‘perdão’ como força de desinstitucionalização, incluindo a desinstitucionalização da soberania e da pena de morte?

As reflexões de Derrida sobre o ‘perdão’ foram o foco de seu seminário em 1997-99, que precedeu diretamente seu seminário sobre a pena de morte. Uma questão levantada então foi se o perdão devem ser figurados como atos soberanos, ou podem ser modos para desconstituir formas estabelecidas de soberania. Há modo para conceitualizar o perdão como forma de vida institucional, talvez como força motriz que pode levar à desinstitucionalização de ambas, da prisão e da pena de morte?

Talvez a oposição à pena de morte tenha de ser ligada a uma oposição a formas de precariedade induzida tanto dentro como fora da prisão, de modo a expor os vários diferentes mecanismos de destruir a vida e para encontrar meios, conflitantes e ambivalentes que sejam, de preservar vidas que, de outro modo, seriam perdidas.***

* ROUDINESCO, Elisabeth; DERRIDA, Jacques. De que amanhã… Diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, 240 p.
[1] NIETZCHE, F. Para a Genealogia da Moral. Uma polêmica (1877) (lê-se em port. em http://ghiraldelli.pro.br/wp-content/uploads/genealogia-da-moral.pdf [NTs].
[2] Esses fragmentos do livro resenhado foram traduzidos aqui, sem referência ao original, sem qualquer rigor terminológico ou tradutológico, apenas para ajudar a ler, por superficial que seja a leitura. Nosso trabalho é distribuir iscas às massas, não vender peixe assado anteontem [NTs].
[3] FREUD, S. O Mal-estar na Civilização, cap. 5, vol.  XXI da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969 [NTs].
[4] VICTOR HUGO, O Último Dia de um Condenado, São Paulo: Estação Liberdade. Trad. Joana Canêdo, 2002 [NTs]
[5] KLEIN, Melanie. Amor, Culpa, Reparação e Outros Trabalhos, in OBRAS COMPLETAS DE MELANIE KLEIN,  São Paulo: Imago, 1996, 504 pp.
[6] BENJAMIN, Walter. “Crítica da Violência”, in Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921) (1ª. ed., 2011; 2ª. ed. 2013), São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades. Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. Org., Apres. e Notas de Jeanne Marie Gagnebin, 176 p.
[7] MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, Rui de Janeiro: Civilização Brasileira, trad. Álvaro Cabral.
[8] http://racismandnationalconsciousnessresources.files.wordpress.com/2008/11/achille-mbembe-necropolitics.pdf

Judith Butler é professora de Literatura Comparada e Teoria Crítica na Universidade de Berkeley (California).

Publicado em London Review of Books, vol. 36, n. 14, pp. 31-33, 17/7/2014

http://www.lrb.co.uk/v36/n14/judith-butler/on-cruelty

Traduzido pelo coletivo Vila Vudu