Tudo indica que tenho, de longa data, uma certa propensão para me meter (ou intrometer?) em questões polêmicas, direta ou indiretamente ligadas à estética e suas vizinhanças. Páreo duro e, por isso mesmo, fascinante. Motivado por mais uma palestra que proferi, recentemente, sobre criatividade, cujo formato e envolvimentos costumo adequar ao nível e ao interesse cultural do público previsto, resolvi levar o assunto para uma crônica no JC, um veículo que, generosamente, costuma hospedar minhas elucubrações, ora mais planas, ora mais perturbadoras.

      No entanto, há mais galhos para complicar as coisas. Prefiro abordar temas como este por ângulos que poderiam ter – mas não têm – explicações convincentes de ordem científica ou paracientífica, tais como a psicologia, a sociologia, a biologia…      

      Quanto ao assunto, é necessário, para começo de conversa, definir o significado do termo estética, que já por si tem muitos padrinhos – desde os inevitáveis filósofos gregos, passando pelos desvanecidos filósofos alemães que alimentaram a ideologia do Romantismo do fim do século 18 à primeira metade do século 19, até a polêmica empreitada de “aggiornamento” de Benedetto Croce, na primeira metade do século 20. Depois dele, até chegar à nossa contemporaneidade, surgiram outros personagens brilhantes, como McLuhan e Umberto Eco, que formularam uma Teoria da Comunicação (leia-se Semiologia e Semiótica) que tirou o status de vertente filosófica ao termo estética. Mas continuando, para não perder o fio da meada: todas as correntes filosóficas trataram de elitizar o significado de estética, definindo-a sempre como qualidade suprema e sublime da interpretação do belo nas manifestações artísticas, tomando como referências exemplares obras-primas, produzidas forçosamente pela vocação e a habilidade aliadas à erudição de seus autores.

      Concluído, ainda que sinteticamente, o inevitável preâmbulo, vamos finalmente tratar da criatividade em si, uma virtude que, pela idade, pode ser considerada donzela (objeto da minha paixão), que foi formando corpo a partir da Revolução Industrial, aliás quase uma recém-nascida se comparada com a velharia das virtudes badaladas pela Filosofia da Arte. Criatividade, um conceito que se alastrou, com a velocidade própria do nosso tempo, formando um campo do qual ainda não conhecemos os limites; um campo que, acho, ainda não tem nome, mas que podemos, provisoriamente, denominar de Filosofia do Conhecimento pela Via da Criatividade, com perdão da minha ingenuidade acadêmica e das reivindicações doutorais.

      Quem tem alguma intimidade com autores da História da Crítica d’Arte, voluntários ou involuntários, que se manifestaram através dos tempos, às vezes geniais, às vezes cáusticos, conservadores e até insolentes, já descobriu que o capítulo Criatividade é citado só eventualmente e en passant como um atributo óbvio e exclusivo dos artistas, sendo o primeiro movente dos predestinados. Os próprios filósofos nunca se interessaram por nenhuma interpretação do termo criatividade, distantes que estiveram – salvo Marx e companhia – da massa bruta e desinteressante da humanidade, dirigindo-se sempre aos cidadãos que cultivam o intelecto. Enfim, para todo o mundo, a criatividade, uma palavra derivada de criação (do latim creatio – tirar do nada) foi, até anteontem, um assunto desinteressante e, portanto, não merecedor de investigação.

      Graças a Zeus, o patriarca bonachão que assistia, lá de cima do Olimpo, ao espetáculo da criatividade dos homens que inventaram deuses que os representassem, na corte, na sua inteireza de ser e pensar, hoje temos a certeza que todos os indivíduos da espécie humana já nascem com o poder da criatividade. Um poder imponderável até a eventual conscientização de cada um, extremamente variável na forma e no grau. Mas inevitável como a herança genética da cor dos olhos e moldada ou moldável conforme o sem-número de fatores culturais que subjugam a condição humana.

      Claro que a analise e a postura das pessoas mais esclarecidas diante de uma nova revelação de um poder comum do gênero humano, pelo reconhecimento deste dote instintivo e precioso qual um tesouro guardado, modificaram muito a maneira de encarar e julgar o comportamento e as perspectivas das possíveis realizações de formas de pensar e de viver individuais e coletivas. Com uma nova característica, vulgarizando o conceito básico da estética: mais bonitas.

      É sempre assim. Quando você começa a embalar na abordagem de um assunto, o espaço acaba, mas acho que ainda tem um tiquinho de área para citar um episódio banal a fim de corroborar a minha opinião. Eu costumo conversar com as pessoas de qualquer classe social e de qualquer ofício para saber da atividade deles. Há pouco tempo, observando um pedreiro, encarregado de restaurar o moldurão de uma fachada vagamente neo-clássica, reparei no processo com que ele tirou um molde e recortou em perfil metálico a fim de dar continuidade a um trecho desfeito. Perguntei onde aprendeu e como aprendeu aquele processo de restauração. Ele respondeu: “Em lugar nenhum. Eu tirei da minha cabeça”. Disse tudo.