I

Não sei se ainda dormia e se sonhava…
Mas era uma visão, uma doçura
Que vinha de nascer da noite escura
E de ouro de carmim se revelava.

Não sei… Mas era um canto, uma voz pura
Que ao crescer toda em cores se banhava
E, às vezes, ascendia ou resvalava
Num vermelho de sangue e de loucura.

Era um nascer assim bem temerário,
Era um cantar solene e solitário,
Fervor, aspirações comuns e raras;

Sombrio de paixões, matriz sagrado;
De alvos seios luar desencantado;
Sobre sangue de amor sol de searas.

II

O silêncio da tarde, os bois pastando
E a luz dourando os arcos do aqueduto…
Tão livre a paz do céu se derramando!
Oh flor de ausente e perfumado fruto!

Alguém que ao longe os braços agitando
Configurasse a angústia de um minuto;
Também modulação se transformando
Na eterna voz de um canto irresoluto.

Embora a luz destile, de entre as palmas,
Um aroma, um veneno sobre as almas,
Evoluindo em surdas agonias;
Neste teu fruto esplêndido e vazio
Há um timbre, uma cor, um calafrio
De descobertas e de profecias.

III

Nas treliças de ferro de uma ponte,
Das águas sobre o plano movediço,
Há um vôo de sucesso e de horizonte…
– Flor e flor de mistério e compromisso.

O tempo em febre e sede extingue a fonte
Do teu refúgio e do teu claro viço;
Passando vão, vão sós baixando a fronte
Os peregrinos de um sonhar remisso.

E quando dos espaços espontâneos,
Em rapidez de sopros litorâneos,
De novo a noite vem se aproximando.

O Frio, o Tenebroso, o Corrompido
Vão reduzindo o cálice ferido
E para sempre as pálpebras fechando.

 

Joaquim Cardozo – Poemas Selecionados
Antologia Organizada por César Leal
Editora Bagaço, Recife 1996