Segunda Parte: O Branco e o Marrom

Capítulo II: Belorizonte Belo

(…) Depois o tratamento e o porquê de cada remédio. Mostrar como se acompanha um caso, como se reexamina cada dia para armar a “atalaia da Vida contra as emboscadas da Morte” – querendo falar como falava o velho Curvo Semedo. Como se julga uma evolução favoravelmente ou prevendo um desfecho sombrio. Errar, confessar que errou, que todos erram, estudar as causas do erro com os próprios alunos, fazer uma sincera autocrítica, bater nos peitos e sussurrar seu mea culpa – por pressa, desatenção, idéia preconcebida, ignorância. O Egon adotara esse sistema e parece que isso agradava, porque à hora de sua visita já tinha seu pequeno séqüito fiel de três, quatro, cinco estudantes a acompanhá-lo e já a tomá-lo como conselheiro. Ele levava extremamente a sério o ensinar a bem examinar – como aprendera do Ari – e sobretudo dava ênfase à observação – à arte de vasculhar o doente com todos os sentidos levados ao pleno do alerta. O ímpeto de “virar a natureza pelo avesso” como dizia Couto, de Austregésilo. Sua vida de professor, que foi longa, teve começo em junho, julho de 1929 na Segunda Enfermaria da Santa Casa de Belo Horizonte.

      Além das verdades, procurava transmitir a seus primeiros discípulos as dúvidas que já o assaltavam. Em pouco tempo de estudo e exercício já assistira mutações, modas ascendentes, modas em declínio. Já sabia que a verdade de hoje pode ser o erro de amanhã. Que quase sempre é assim. Que toda a Arte Médica estando em constante reformulação e reforma, tudo que é atual e moderno é duvidoso e esconde uma mentira ou um engano que os tempos vão tornar aparentes. Que a Medicina é, assim, instável – a construção duma cidade sobre solo em terremoto permanente. Que disso nascem a insegurança íntima do médico e uma espécie de angústia ruim que o habita – e altera sua alma. Quando ele leu aquela história de Villiers de l’Isle-Adam – num de seus “contos cruéis” – Le Secret de l’Église, ficou com aquilo por dentro e descobriu que a Medicina também tem seus segredos, seu segredo. O conto do escritor francês é a história dum padre jogador que tendo perdido todo seu dinheiro e todas suas posses, queria continuar a jogar. Apostou os vasos, os cibórios, candelabros, ostensórios da sua paróquia, suas alfaias – e perdeu. Quando se viu a neném arriscou contra tudo o que perdera, o “segredo da Igreja” – que ele, sacrílego, revelaria ali. Os parceiros aceitaram e mais uma vez o reverendo perdeu. A muito custo e muita instância, ameaçado e apertado, teve de pagar, ou seja revelar o segredo maior, o extra, supra-segredo da sua religião. Lívido ele o soltou. Le secret de l’Église c’est qu’il n’y a pas de Purgatoire. Os parceiros riram no princípio mas quando a idéia da irremissibilidade e de condenação imediata e sem apelo contida na frase os penetrou, ficaram mais sem sangue que o sacerdote indigno. E o Egon pensava no desamparo que seria o da humanidade no dia em que ela soubesse do nosso segredo e que alguém tivesse bastante coragem para dizer também – O SEGREDO DA MEDICINA É QUE TODAS AS DOENÇAS SÃO INCURÁVEIS. A cura, a cicatriz já pode ser outra doença. Uma válvula cardíaca inflama, cura, cicatriza e se retrai e é nessa cura paradoxal que vai se entaipar a morte paciente esperando os efeitos a longo prazo da insuficiência e da estenose. Um simples resfriado deixa seu rastrinho de nada. Mas deixa. Indelével… O cirurgião que tira um pedaço do corpo e com ele a doença, deixa atrás dele uma falta que, em sã consciência, devia impedi-lo usar a expressão “alta curado”. Um amputado das pernas, das duas pernas, escapa, cicatriza. Tem a dita alta curado. Mas já não é um homem. É uma variedade d’homem – é um mutilado. O Egon infiltrava com seus ensinamentos, essas pastilhas de veneno. Mas dava também o antídoto. Ensinava, honestamente, que as doenças não têm cura mas que todas têm tratamento. Este é outro segredo do médico. Auxiliar o equilíbrio somático acompanhando a natureza na sua reconstrução provisória. Nunca remando contra a maré. Sabendo desde o princípio que toda a Medicina é o ato gratuito de saber diagnosticar. Depois medicar pouco e na hora, não ser ativista terapêutico. Entender o doente. Conversar o doente. Saber ouvi-lo com paciência. Amparar com o remédio sintomático. Consolar com a presença, a palavra oportuna, a bendita mentira, o santo perjúrio. Ser bom e simples. Guardar e repetir a cada instante a melhor coisa que ensinou Miguel Couto em frase um pouco rebuscada: “Se toda a Medicina não está na bondade, menos vale dela separada”*. (…)

 

 

Galo-das-Trevas – memórias/5 – Pedro Nava
Livraria José Olympio Editora – 3ª edição
Rio de Janeiro, 1981