Entre as minhas leituras mais recentes devorei a também recente obra de Saramago, intitulada “As intermitências da morte”. Encantado, uma vez mais, com a exuberante criatividade desse Nobel português, li o livro quase que de um fôlego só, com a mente aguçada e um permanente sorriso nos lábios. A chave da história é um fenômeno biológico absolutamente impossível de acontecer: de um dia para outro, em um país imaginário, as pessoas simplesmente deixam de morrer. No entanto, as situações geradas por esse monsense levado ao extremo fazem todas sentido. Os problemas de relacionamento e comportamento – ainda que submetidos à lógica do absurdo – não deixam que as instituições sociais desistam de defender seus tradicionais interesses.

      Sob nenhum aspecto, no entanto, a engenhosa trama deste livro permitiria que ele fosse enquadrado na ficção científica. É pura literatura, isto sim, e das melhores, negando a opinião corrente de que todas as obras construídas em torno de situações inverossímeis pertençam ao gênero. Falar nisso, creio que nenhum autor desse filão – a ficção científica –, que foi sucesso editorial entre as últimas décadas do século 19 e as primeiras do século 20, teve a genialidade de imaginar o que de fato aconteceu durante a segunda metade do século 20. Estou me referindo à informática, que eclodiu como num passe de mágica e aumenta constantemente seus poderes com uma velocidade astronômica. O que aconteceu, basicamente, é que a memória eletrônica multiplicou por um número infinito de vezes a capacidade de retenção de dados da memória humana, escravizando o poder intelectual de todos nós, pobres mortais.

      Daí, parece-me incomensurável, pelo efeito em cadeia, a quantidade crescente de benefícios que ela já trouxe e mais trará à vida prática. Mas, por outro lado, temo que esse espantoso poder de armazenar e computar tudo quanto já foi produzido pela inteligência humana iniba progressivamente a sublime emoção de criar e fruir das idéias que acabam de nascer ao longo do insignificante trajeto de nossas vidas. A impressão que eu tenho é que tudo o que está guardado na memória eletrônica que abraça informações acumuladas durante milênios, as esvazie cada vez mais do seu conteúdo emocional, tornando-as meras referências culturais. Parece-me, porém, que não é isso o que pensam as novas gerações. Conversando com a moçada que chegou à idade da razão  e está manejando com a maior desenvoltura os meios de informação e reprodução eletrônicos, acho que estou me conscientizando que, na verdade, vai acontecer o contrário. Isto é, o mundo inteiro, usuário da memória eletrônica, deverá considerar que a reprodução de uma obra de artes plásticas com o registro dos principais dados a seu respeito, assim como o resumo de uma obra literária devidamente comentada, captadas na internet, dispensarão a trabalhosa tarefa de conhece-las “ao vivo”. Os “originais”continuarão sendo guardados em museus e bibliotecas, assumindo o papel de meras mas legítimas referências. Ninguém mais terá que se dar ao trabalho de freqüentar os ambientes onde estão guardadas e se encantar com elas. Ambientes que muitas vezes cheiram a mofo.

      Agora, para encerrar essa especulação, vou pedir licença a Saramago para cometer uma espécie de plágio. Ao invés de imaginar uma vida de pessoas que nunca acaba, vou supor uma eventualidade absurda: um apagão da memória eletrônica, o sumiço de tudo quanto está gravado nela e uma incapacidade de reter novas informações, de qualquer gênero, durante um tempo indeterminado. Deixo ao leitor o encargo de fantasiar acerca do caos que invadiria nossas vidas.