Um dia desses acordei com a certeza de que minha memória é o meu bem mais precioso.

      Às vezes passo horas organizando essas lembranças e fico emocionada, é aquela sensação boa de ter vivido e compartilhado com outros momentos simplesmente inesquecíveis.

      Acho maravilhoso este encontro do passado com o presente… E sempre me agrada escrever com as cores da delicadeza essa memória que me faz perceber a beleza da vida.

      Muitas vezes viajo pelo interior da minha cidade – zona rural cheia de sentimentos e aromas, linhas que convidam a imaginação a refazer os caminhos e buscar o amor, acreditando na felicidade que ficou, mesmo quando o tempo mostra que quase todos já foram embora.

      Neste momento o sol se abriu – estou no Pereirão.

      Meus tio-avós eram vizinhos. A fazenda do meu avô materno, ficava entre as fazendas de dois irmãos. De um lado a Ladeira, fazenda do tio Canem e do outro o Pereirão, fazenda do tio Valdemar.

      O Pereirão sempre me fascinou. A casa-sede com amplas varandas na frente e nas laterais se mostrava grandiosa. Era uma casa aberta. O vento circulava livremente amenizando o calor do sertão. Do lado direito os pés de graviolas davam à casa um que de encantamento. Da sala de refeições podia se ver o açude – espelho d'água a perder de vista – fotografia perfeita para qualquer cenário cinematográfico. O Pereirão tinha charme e alguma sofisticação. Confesso que a casa era a mais bonita das três.
      
      Quando chegávamos para uma visita, tio Valdemar e tia Terezinha nos recebiam em festa.

      A  mesa era posta: o cheiro do café torrado invadia a sala. Posso revelar que nessas visitas, adorava tomar café, virava o bule e enchia a minha xícara até derramar.Tapiocas quentinhas saidas do forno da farinhada  e todas as delícias da fazenda: queijo fresco, requeijão, a coalhada com soro e a coalhada escorrida, a minha preferida. Rapadura raspada para a cobertura e o contentamento familiar que se irradiava nas palavras. A conversa fluia aquecida pelo café de boas-vindas.

      Depois a roda de conversa na varanda – era esquecer o tempo.

      A família dos tios era bem grande, lembro dos primos: Inácio, braço direito do tio Valdemar na fazenda, contando casos da Macambira Velha e Saco do Carnaubal, fazendas do Ceará. Hermes que estudava em Fortaleza e chegava de férias – como era gostoso ouvir sobre sua vida na cidade grande – um mundo completamente novo e cheio de expectativas. Era atraente a possibilidade de estudar em outra cidade, começar a sonhar com os livros, com a universidade… Talvez o primo Hermes não tenha a dimensão da importância daquelas rodas de conversa – despertaram em mim o gosto pelo conhecimento.

      Celina e Maria de Mello, as primas, mostravam em suas ações a beleza da aristocracia rural. Era interessante, por mais simples que fosse o estilo de  vida na fazenda, as roupas, os gestos e as falas mostravam a nobreza da família. Ficava encantada com o glamour presente nos detalhes. Elas realçavam traços da fidalguia sem nenhuma ostentação. Essa era a marca dos Mellos, saber conviver em harmonia sem perder a excelência.

      A movimentação da casa era enorme, os tios tinham muitos netos, filhos dos primos Andrade e Terezinha, Justo e  Ricardina e o grupo de meninos era acrescido pelos filhos dos moradores.

      Dentro da fazenda, ficava também a casa dos primos Gonzaga e Terezinha. Seus filhos, Eduardo, Francisco, Gonçalo e Gorete, crianças que se incorporavam ao nosso grupo na exploração da roça… e como era fantástico conhecer a casa de farinha, correr pelos campos, subir nas árvores e comer frutas no pé… esses são pedaços da minha vida que ficaram eternizados pelo amor familiar. Olho para meu coração e vejo um pontinho de luz adormecido, aquecido pela sabedoria do luar que silenciosamente tem o poder de acordá-lo nas horas em que o dia carece de forças para alimentar a minha alma. 

      De vez em quando eu sinto vontade de deitar naquela varanda com piso de ladrilhos de barro cozido e ouvir apenas o barulho do vento varrendo as folhas secas do verão. Conforto que o meu coração é capaz de reconhecer, sentindo apenas o perfume da saudade.

      Tantos anos se passaram e ainda consigo visualizar o esplendor do Pereirão.

      São lembranças que me chegam carregadas de admiração – essa coragem que os tios tinham de se mostrar por inteiro – era a vida celebrada diariamente na sua plenitude.