Inúmeros são os livros que afirmam serem os árabes originários do deserto. Não é verdade. Antes de viverem na aridez das areias, bebendo às vezes da água salobra dos poços, tendo às vezes de ingerir apenas leite para poupar a água dos camelos, aqueles homens habitaram cidades. Para tanto, procuraram as regiões mais amenas, confinadas ao sul da península, e aprenderam a desviar o curso dos rios e a construir barragens.

      É estranho que, nos tempos históricos, tribos que descendiam desses opulentos cidadãos se tornassem nômades e fossem errar pelas terras da Síria e do Iraque. Uma lenda conta a história dessa migração.

      Em Marib, no Iêmen, ficava o mais fabuloso desses diques, que abastecia não só a cidade de Marib como diversas aldeias da costa do Mar Vermelho às margens do Mar de Omã.

      Ricos, poderosos, o povo de Marib negociava com potentados estrangeiros e recebia em suas tentas mercadores da Índia, Pérsia, Egito, Fenícia, Abissínia, Babilônia.

      Mas era um comércio singular, em que as mercadorias eram oferecidas e obtidas apenas por meio de gestos. Não que os estrangeiros desconhecessem o árabe: não eram capazes de compreender o sentido das frases pronunciadas em Marib.

       Porque o povo de Marib só falava por símbolos. Constituía baixeza empregar uma linguagem que não fosse figurada.

     Assim, se alguém quisesse mencionar um camelo, poderia chamá-lo “navio” ou “duna”. Poderia dizer “rato” para designar “adaga”; e “olho” em vez de “oásis”. Às vezes frases inteiras, como “preciso beijar tuas sandálias”, no lugar de “quero um cálice de vinho”.

      Os caminhos dessas metáforas às vezes eram simples, como a associação entre “olhos” e “oásis” porque de ambos mana água; ou entre”camelo” e “navio”, porque o mar é uma espécie de deserto; até mesmo entre “rato” e “adaga”, porque os dentes daquele têm o fio aguçado como a lâmina desta.

      Mas, normalmente, esses encadeamentos de símiles eram um tanto mais complicados, sendo necessário saber, por exemplo, que o vinho de Marib era importado em lombo de camelo, e que eram esses animais que forneciam o couro para feitura de calçados; ou ter visto dunas de areia movidas pelo vento do deserto, semelhantes a corcovas de camelos que se vão afastando, gradativamente.

     Mas houve um dia em que um dos lavradores de Marib surgiu no centro da cidade e gritou:

      – Há uma fenda na parede do dique!

      De imediato, uma mulher apunhalou o marido, imaginando que “dique” simbolizava o homem intumescido de desejo, que “parede” era sua rigidez, e “fenda” a metáfora óbvia que todos reconhecem. Afora ela, ninguém pareceu se importar.

      Na verdade, a frase não fazia muito sentido. Ninguém a conseguira interpretar de maneira satisfatória. O lavrador a repetiu em voz alta, umas três ou quatro vezes, antes de partir de Marib, na direção da Síria.

      No dia seguinte, o dique ruiu. A inundação matou muitos. A cidade e as aldeias em torno foram arrasadas. Grande parte dos sobreviventes iniciou o êxodo para o norte.

      Tentaram em vão encontrar o homem da frase, cujos termos literais iludiram dolosamente o povo de Marib. Mas teriam cometido uma injustiça, se o tivessem apanhado.

      Tenso, desesperado, no puro intento de advertir o povo de Marib, por buscar um símbolo inequívoco para os conceitos de “fenda” e “dique”, o homem percorrera todo o vocabulário árabe, palavra por palavra, até fechar o círculo, escolhendo “fenda” como metáfora de “fenda”; e “dique”, como metáfora de “dique”.


O enigma de Qaf – Rio de Janeiro: Record, 2004, pág. 33.