Olhos e Olhares

Aquela escuridão. Aquele balanço. Aquele barulho que vinha não se sabe bem de onde. Aquelas vozes dizendo coisas como “ali”, “ali não”, “onde então?”, “no terreno. Solte por lá” e a sensação de estar voando, em direção a lugar nenhum. Um grande barulho. O rodopiar na escuridão e pronto. Tudo acabou. Silêncio. Ela dialogava com aquela ausência de tudo, inclusive de som e luz. E por ali ficou. Por horas. Quase um dia todo. Um dia todo daqueles que duram um ou dois minutos, quando não sabemos onde estamos, até que o medo misturado com a coragem – chamado por nós curiosidade – a fez erguer e deslizar as patinhas e, num ponto rugoso, forçar cautelosamente o teto e abrir a caixa de papelão para ver surgir uma luz e, em seguida, um céu azul de liberdade.

Outra patinha, mais força e um salto terminado em um gramado.

Era um terreno. Os homens o chamam de baldio, mas, para uma pequena gata de menos de dois meses de vida, um mundo a descobrir. Um mundo de morros, árvores, matos, lixo, muros por todos os lados, exceto um: o da rua. Onde outro mundo, talvez maior, existia. Caminhou naquela direção. Talvez tivesse sido trazida por ali. Talvez por ali voltasse para casa, para mãe cheia de leite, para aqueles irmãos brincalhões e para aquele menino que sempre estava ali, desde o dia em que abriu os olhos pela primeira vez. Era dele a maior saudade naquele instante.

Parou junto à sargeta.

Carros passavam sem piedade. Indo, voltando. Como se esperassem um bichinho sair de algum terreno para deixá-lo no asfalto para o sempre. Mas era preciso chegar do outro lado, onde pessoas passavam também indo e voltando. Era preciso atravessar. Mas era preciso mais coragem. Mais coragem. Foi. Quando se tem apenas alguns centímetros de altura, é melhor olhar para frente – somente – ao se passar de um lado a outro da rua. E, quando se chega, depois de correr sem respirar por dois longuíssimos segundos, talvez os últimos, talvez os primeiros de uma vida, é como se tivesse novamente aberto os olhos, só que, agora, não mais à sua frente estava o menino. Estava um mundo um pouco maior. Um pouco mais complexo. Um mundo ainda incompreensivel.

Mas pouco pensou sobre a metafísica do momento. Apenas miou. Miou como nunca imaginou que fosse capaz. Miou tanto e tanto que mal pode perceber quando uma mão laçou-lhe o corpo e, num giro de meia circunferência, a pôs a olhar novamente em olhos humanos. “Você grita alto de tanta fome”. Agora, com miados cada vez mais baixos, ela era levada por ruas e ruas, em direção a alguma casa, algum lugar para dormir e tomar água. No caminho, pensava no menino, olhos nos olhos recém abertos. Ouvia carros, mas já os havia vencido. E sei ter lembrado pouco da escuridão, apenas quando percebeu sentir o mesmo balanço de outrora, mas agora, com o poder de ver o caminho e, vezenquando, olhar o céu, azul.

* Luiz Henrique Dias é dramaturgo. http://luizhenriquedias.com.br . Siga ele lá: @LuizHDias