O Ladrão

 

Se alguém visse a desenvoltura com que o magricela do Ayltinho abriu aquela porta, iria dizer que o menino era chaveiro profissional.

Mas ele não era.

Era, sim, malandro. Bem malandro. Daqueles que passavam em frente à casa dos outros várias vezes, por vários dias, até decidir a hora certa de entrar e levar tudo que pudesse carregar nos seis grandes bolsos da bermuda. E hoje foi a vez da casa da Dona Dita, uma senhora da Baixada do Ganso, à Rua Nova Ipiranga, na Penha.

A técnica do mulato era sempre a mesma: escolhia a vítima e, durante cinco dias, fazia um levantamento dos hábitos para, na hora certa, “fazer o trabalho”. Geralmente optava por mulheres, solteiras, ou, no caso da Dona Dita, viúvas. Ela morava sozinha, tinha dois filhos, trabalhadores do Complexo Industrial, em Caxias e, como boa mulher de Deus que era, ia sempre à Igreja. Diariamente. Congregava na Assembleia do bairro. Passava o dia em casa a rendar. Saía apenas para ir ao mercado ou à lotérica.

“Deve viver de pensão” – pensava o Ayltinho, enquanto, do boteco em frente, cuidava os horários da Dita. “Mulher assim, deve ter dinheiro em casa. Vou entrar lá na sexta”.

E era sexta-feira quando ela, seguindo seu costume, saiu cantarolando com a bíblia na mão e quando ele, sem deixar nem a luz do poste lhe fazer sombra, atravessou aquela porta com a desenvoltura de um fantasma e viu-se lá na sala de jantar, entre as fotos dos filhos e do finado. Pôs-se a vasculhar. Nunca foi de levar porcaria e nem coisas para vender. Mas gostava de satisfazer seu magro corpo com as delícias da geladeira. Bebeu suco, comeu bolo, se deliciou com um pacote de queijo ralado, tomou leite, engoliu dois ovos crus: “uma iguaria” – pensou, parafraseando um personagem de novela. Depois, foi a vez da estante do corredor. Colocou no bolso alguns cartões telefônicos e um do ônibus, folheou uns livros da igreja. Mas logo foi para o quarto. Queria mesmo dinheiro. Só pelo dia a dia da vítima, já tinha a noção de quanto iria achar e onde deveria estar guardada a grana. “Só pode estar na gaveta de calcinhas”. E estava. O Ayltinho conhecia viúvas. Foi, aos poucos, juntando os pequenos maços, presos por elásticos e divididos conforme o destino: “aluguel do túmulo”, “parcela do velório”, “dinheiro da igreja”, “prestação do guarda-roupa”, “mercado”, “remédios”. Dona Dita sempre muito organizada e criteriosa. Ao todo, os novecentos e vinte reais da gaveta foram colocados em um dos bolsos da bermuda. Depois, alguns brincos e outros objetos fáceis de vender ou “dar para a Amélia”, uma namoradinha do rapaz, e pronto. Estava feito o serviço. Deu uma espiada pela janela e, vendo a calmaria da rua, saiu como entrou, invisível, e subiu a viela na direção do bordel onde a Amélia trabalha.

O Ayltinho não voltou para aquelas bandas até hoje, mas ouviu dizer, pelas bocas que circulam na Baixada, que Dona Dita colocou a culpa na nora, mulher do filho caçula, uma “safada daquelas”. Segundo a velha, a menina tirou o rapaz da igreja e o ensinou a tomar cerveja. “Quem faz isso”, disse à irmã, na igreja, “pode também roubar a casa da sogra”.


* Luiz Henrique Dias é dramaturgo e diretor teatral. Leia mais em www.luizhenriquedias.com.br ou siga ele no twitter: @LuizHDias