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OS NEGROS

– Se eu pudesse comprar isto! Se eu pudesse comprar aquilo!
Vestia um vestido de minha mãe, amarrava um barbante na cintura e pulava o muro da vizinha, trepava, nas árvores, colhia as frutas, ia introduzindo-as dentro do seio, depois descia e ia saboreá-las.
Mas não sentia tranquilidade interior. O meu subconsciente me advertia que havia praticado um ato indigno. Eu não tenho coragem de roubar. Devo e deverei lutar para conseguir tudo com honestidade. Tinha a impressão que alguém sussurrava nos meus ouvidos – seja honesta, seja honesta, seja honesta, – como se fosse um tique-taque de um relógio. Parece que eu tinha um preceptor dirigindo-me. Quando eu ganhava uma fruta, ou comprava, não ficava atemorizada, todos têm o bom senso. Se o homem rouba, é porque ele é canalha.
Passado uns dias, resolvi entrar no quintal da vizinha. Quando fui pegar uma manga, a cobra foi pondo a boca. Assustei, perdi o equilíbrio e a noção. Fui desprendendo-me de cima para baixo, batendo nos troncos e caí no solo semi-inconsciente. Esqueci que estava furtando as mangas. Comecei a gemer, os cães, ouvindo-me gemer, ladraram e as galinhas cacarejaram. A dona Faustina foi averiguar o que havia. Encontrou-me com o seio recheado de mangas. Dirigiu-me um olhar que amedrontou-me. Percebi que ela era avarenta.
Repreendeu-me!
– Então é você quem rouba as minhas frutas. Negrinha vagabunda. Negro não presta.
Respondi:
  – Os brancos também são ladrões porque roubaram os negros da África.
Ela olhou-me com nojo.
– Imagina só se eu ia até a África para trazer vocês… Eu não gosto de macacos.
Eu pensava que a África era a mãe dos pretos. Coitadinha da África que, chegando em casa, não encontrou os seus filhos. Deve ter chorado muito.
Estava deitada no chão e dizia:
– Olha a cobra! Olha a cobra! – desfaleci.
Foram avisar a minha mãe que eu estava roubando as mangas de dona Faustina. Minha mãe pegou um chicote e deu-me duas chicotadas. Despertei, e saí correndo como se as minhas pernas fossem movidas a motor.
Minha mãe ficou furiosa porque havia vestido o seu vestido novo. Era um vestido de fustão estampado. Que suplício quando eu passava pelas ruas e os meninos gritavam:
– Ladrona de manga! Ladrona de manga.
Mas isto eram cenas que passavam. E as crianças esquecem logo o que presenciam e os dias iam decorrendo-se. Eu notava que os brancos eram mais tranqüilos por que já tinham seus meios de vida. E os negros, por não ter instrução, a vida era-lhes mais difícil. Quando conseguiam algum trabalho, era exaustivo. O meu avô com setenta e três anos arrancava pedras para os pedreiros fazerem os alicerces das casas. Os pretos, quando recebiam aquele dinheirinho, não sabiam gastar em coisas úteis. Gastavam comprando pinga. Os pretos tinham pavor dos policiais, que os perseguiam. Para mim aquelas cenas eram semelhantes aos gatos correndo dos cães.
Os brancos, que eram os donos do Brasil, não defendiam os negros. Apenas sorriam achando graça de ver os negros correndo de um lado para outro. Procurando um refúgio, para não serem atingidos por uma bala.
A minha bisavó Maria Abadia dizia:
– Os brancos de agora já estão ficando melhor para os pretos. Agora, eles atiram para amedrontá-lo, antigamente atiravam para matá-los.
E os pretos sorriam dizendo.
– O Benedito virou lebre, quando viu os policiais.
Quando os pretos falavam: – Nós agora, estamos em liberdade – eu pensava: “Mas que liberdade é esta se eles têm de correr das autoridades como se fossem culpados de crimes? Então o mundo já foi pior para os negros? Então o mundo é negro para o negro, e branco para o branco!”
Eu notava que, com as mulheres pretas, eles não mexiam muito. Não faziam elas correrem. Mas falavam palavrões para elas e mostravam o pênis, e eu fui dizer para a minha mãe:
– Sabe mamãe, eu vi o homem mostrando a vela para a Vitalina, e falou umas coisas que eu não compreendi. A filha da Vitalina chorou e disse que vai contar ao noivo dela.
Quando não chovia, as mulheres reuniam-se, iam fazer romarias, rezar aos pés dos cruzeiros e molhavam as cruzes e pediam a Deus para mandar chuvas, acendiam velas. O meu avô rezava o terço, quem sabia rezar, era tratado com deferência especial. Ele recebia convites para rezar nos locais distantes. Depois do terço, nós bebíamos licor de abacaxi, e os comestíveis eram variados. Broa de fubá, biscoito de polvilho. Eu ficava vaidosa por ser a neta de um homem que sabia rezar o terço, arroz-doce preparado com leite puro.
Os oitos filhos do meu avô não sabiam ler. Trabalhavam nos labores rudimentares. O meu avô tinha desgosto porque os seus filhos não aprenderam a ler, e dizia:
– Não foi por relaxo de minha parte. É que na época que os seus filhos deveriam estudar não eram franqueadas as escolas para os negros. Quando vocês entrarem nas escolas, estudem com devoção e esforcem-se para aprender.
E nós, os netos, recebíamos as palavras do vovô como se fossem um selo e um carinho.
O meu avô era um vulto que saía da senzala alquebrado e desiludido, reconhecendo que havia trabalhado para enriquecer o seu sinhô português. Porque os que haviam nascido aqui no Brasil tinham nojo de viver explorando o negro.
O vovô dizia que os brasileiros eram os bons homens, de mentalidades puras, iguais às nuvens no espaço.
– Deus que ajude os homens do Brasil – e chorava, dizendo: – O homem que nasce escravo, nasce chorando, vive chorando e morre chorando, Quando eles nos expulsaram das fazendas, nós não tínhamos um teto decente, se encostávamos num canto, aquele local tinha dono e os meirinhos nos enxotavam. Quando alguém nos amparava, nós já sabíamos que aquela alma era brasileira. E nós tínhamos fé: os homens que lutaram para nos libertar hão de nos acomodar, o que nos favorece é que vamos morrer um dia e do outro lado não existe a cor como divisa, lá predominarão as boas obras que praticamos aqui.   
No mês de agosto, quando as noites eram mais quentes, nos agrupávamos ao redor do vovô para ouvi-lo contar os horrores da escravidão. Falava dos Palmares, o famoso quilombo onde os negros procuravam refúgio. O chefe era um negro corajoso de nome Zumbi. Que pretendia libertar os pretos. Houve um decreto: quem matasse o Zumbi ganharia duzentos mil-réis e um título nobre de barão. Mas onde é que já se viu um homem que mata assalariado receber um título de nobreza! Um nobre para ter valor tem que ter cultura, linhagem.
Mas com tantas celeumas em torno do negro, o negro foi ficando importante, o negro e o ouro eram coisas de grande valor. E com os debates, liberta não liberta, o português foi ficando amável com o negro.  Mas não conseguia reconquistá-lo, e já estava enfraquecendo-se. Se era severo com os negros, era criticado, perdendo sua autoridade.

Os abolicionistas instigavam os negros a não obedecer aos sinhôs. Mesmo que eles quisessem fazer um levante estariam sós, não poderiam contar com a cooperação dos seus escravos. Começaram a dar presentes aos escravos. Furavam as orelhas das negrinhas, ofereciam-lhes brincos de ouro com a pretensão de reconquistá-los. Mas já eram quase 400 anos de sofrimento.
Havia os pretos que morriam com vinte e cinco anos: de tristeza, porque ficaram com nojo de serem vendidos. Hoje estavam aqui, amanhã ali, como se fossem folhas espalhadas pelo vento. Eles tinham inveja das árvores que nasciam, cresciam e morriam no mesmo lugar. Os negros não são imigrantes, são acomodados. Não sonham com outras plagas. Às vezes o homem era vendido e separado de sua esposa. Os sinhôs haviam espalhado que eles eram amaldiçoados pelo profeta Cam. Que eles haviam de ter a pele negra, e ser escravo dos brancos. A escravidão era como cicatriz na alma do negro.
Quando um negro dizia: – Eu sou livre!, ninguém acreditava e zombavam dele.
– É que uma cobra ia morder o meu sinhô, eu vi, e matei-a e o sinhô disse que eu salvei a sua vida e libertou-me. Agora eu sou a menina dos olhos do sinhô. Almoço na mesma mesa ao lado do sinhô e não durmo na senzala.
Após a libertação, os portugueses ficaram apavorados com medo dos negros. Era o reverso da medalha para eles que foram os leões e eram obrigados a transformar-se em ovelhas. Milhares deixaram o país e o Brasil ficou à deriva.
– Já que vocês são livres, saiam das minhas terras! Vamos ver se vocês conseguem encher a barriga com a liberdade. imagina só, ter que dar dinheiro aos negros! É um pecado.
O povo era revoltado porque o seu sonho era aprender a ler para ler o livro de Castro Alves. Os negros adoravam o Tiradentes em silêncio. Se um negro mencionasse o nome de Tiradentes, era chicoteado, ia para o palanque para servir de exemplo. Para os portugueses o Tiradentes era o secretário do diabo. Para os negros, ele era o ministro de Deus.
O vovô nos olhava com carinho. “Deus os protegeu auxiliando-os a não nascer na época da escravidão.” Os negros libertos não podiam ficar no mesmo local. Deveriam sair de suas cidades. Uns iam para o Estado do Rio, outros para o Estado de Minas, de Goiás, para ficar livres dos xingatórios dos ex-sinhôs, e repetiam as palavras de Castro Alves: “O negro é livre quando morre.”
Eu estava com cinco anos, achava esquisito aquelas cenas antagônicas, a minha mentalidade embrionária não me auxiliava a compenetrar aquelas divergências. Se o negro passava cabisbaixo, o branco xingava!
– Negro, vagabundo! Eu não gosto desta raça! Eu tinha esta raça para o comércio.
Eu pensava: “Meu Deus! quem foi que começou com esta questão, foi o preto ou foi o branco? Quem procurou o preto? Se foi o branco quem procurou o preto, ele não tem direito de reclamar. O negro não invadiu suas terras, foram eles que invadiram as terras dos negros.” Ninguém para me explicar. A minha mãe já estava saturada com as minhas perguntas.
Mas o mundo é tão grande! Tem tanto espaço, todos podem viver bem aqui dentro! Por que estas brigas? O meu avô dizia:
– Os que brigam são os animais que não sabem pensar.
Então o homem é um animal porque ele briga mais do que os animais. Oh! meu Deus! Se o mundo é assim, não vale a pena nascer! Se não predominar a educação entre os homens, eles jamais serão felizes. Há mais ódio no mundo do que amizade.
Eu já sabia que as raças que eram hostilizadas no mundo eram; os negros, por causa da cor; os ciganos, por serem nômades, ladrões trapaceiros e não terem pátria, e os semíticos porque brigaram com Cristo. Mas se o Cristo, que foi ofendido e martirizado, perdoou-lhes, então por que é que os homens hão de guardar ressentimentos? Se os homens depois da morte de Cristo tivessem deixado de matar compreendo a inutilidade do homem matar o próprio homem! Mas o homem continuou com a sua tara. Ele não respeita os dez mandamentos do livre arbítrio. Quando um mata o outro, fica jactancioso, arrogante.
Minha tia Claudimira trabalhava para os sírios que vinham como imigrantes para o Brasil. E aqui conseguiam até empregadas. Ganhavam trinta mil-réis por mês, para lavar a roupa, passá-la, cuidar das crianças, de casa e da cozinha.
Pensava: “Por que será que eles deixam a sua pátria e vêm para o Brasil?” E dizem que o nosso país é um pedacinho do céu. Não havia motivos para odiá-los. Porque gostavam do país, e não perturbavam. Pensei: “Será que o Brasil vai ser sempre bom como dizem eles? Por que será que o estrangeiro chega pobre aqui e fica rico ? E nós, os naturais, aqui nascemos, aqui nós vivemos e morremos pobres?”
Ouvia dizer que os estrangeiros que já estão há mais tempo no Brasil auxiliavam os patrícios pobres. Que os brasileiros ricos não auxiliavam o brasileiro pobre. Que não confiam. Os estrangeiros não vinham pobres. Eles não eram analfabetos e dominavam o comércio. E o brasileiro analfabeto não tinha condição de progredir.
Minha tia levava o quibe para nós comermos e dizia que os sírios socavam a carne no pilão. E nós dávamos risada. O brasileiro não conhecia a lentilha e dizia que era feijão dos turcos.
Se perguntasse:
– O senhor é turco?
– Non, eu sírio! Turco não presta!
Pensava: “Que mundo é este? Um mundo para viver-se nele é necessário ter um estoque de paciência.”
O japonês diz: “Chinês não presta.”
O chinês diz: “Japonês non presta.”
O branco diz: “Amarelo não presta.”
O branco diz: “Negro não presta.”
O negro diz: “Amarelo não presta, o branco também não presta.”
O branco criou a alta sociedade, lá não entra o negro. Só a terra é que não tem orgulho. No mundo a humanidade nasce e morre. Quando o homem está vivo, vive com os cereais que saem da terra. E quando morre vai para o seio da terra. Ela não fala, mas é sábia. É a melhor obra de Deus.
Eu gostava de frutas, mas era difícil conseguir dinheiro para compra-las. Eu já estava notando que o pobre vive com as pretensões.
Um dia ouvi minha mãe contando que o meu tio Joaquim estava tomando água numa torneira pública – o chafariz – quando o filho do Juca Barão chegou e disse:
– Sai daí negro sujo! Quem deve beber água primeiro sou eu, que sou branco -, e empurrou o meu tio, que ficou nervoso e retirou uma faquinha de arco de barril que ele fez, e deu um golpe na nuca do filho do Juca Barão, que caiu no solo sem vida.
O meu tio não foi preso por ser menor.
O juiz de direito era o doutor Brand. Os brancos reuniram-se e foram xingar o vovô:
– Agora que os negros são livres, vão matar os brancos e já são protegidos pela lei.
Estas cenas eram motivo para os portugueses ufanarem:
– Estes atos selvagens são a consequência da liberdade. E vocês vão ver coisas piores, pois o Rui chegou a dizer que, se o negro estudar, poderá ser governador, presidente, deputado, senador e até diplomata.
Os negros que ouviam não respondiam, porque os portugueses eram ricos. Eles eram livres, mas pobres. Na questão do negro com o branco, n ninguém procura saber com quem é que está a razão. E o negro é quem acaba sendo o bode expiatório.      


Livro: Diário de Bitita
Autor: Carolina Maria de Jesus
Editora: Nova Fronteira
Rio de Janeiro, 1986