Os músicos brasileiros levantam a voz para defender seus direitos de autor. Na terça-feira carnavalesca, dia 8, cerca de duas centenas deles, como Ivan Lins, Fernanda Abreu, Lenine, Francis Hime, André Abujamra e Antonio Pinto, e suas entidades representativas, como o Fórum Nacional da Música e a Associação Brasileira da Música Independente, lançaram um manifesto que reivindica uma “terceira via” de entendimento de tal direito. No documento, a ser encaminhado também ao Ministério da Cultura (MinC), os artistas propõem a criação de uma secretaria da música, a operar no ministério nos moldes da Secretaria do Audiovisual, e a formação de um órgão fiscalizador das atividades do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad.

Nos últimos dois meses, desde que, em seu discurso de posse, a ministra Ana de Hollanda bateu na tecla de que “sem artista não há arte”, um grupo de adeptos da inclusão digital, fortalecido a partir da implantação das políticas de acesso de Gilberto Gil e Juca Ferreira, pareceu assumir uma posição de enfrentamento ao grupo de artistas, ao reivindicar, por seu lado, que “sem público não há arte”. Quem permanece ausente das discussões em torno da política cultural brasileira mal compreende tal embate.

Por que brigam, artistas e usuários, se deveriam lutar juntos pela expansão cultural?

A polarização entre essas visões começou a se formar no segundo semestre de 2010, quando o MinC abriu à consulta pública a redação do anteprojeto que muda a Lei de Direitos Autorais (LDA) de 1998. A redação inicial do anteprojeto propunha, em seu primeiro artigo, colocar o artista na condição de responsável pelo “desenvolvimento nacional”. Na prática, isso queria dizer que ele cederia seu direito de autor obrigatoriamente quando o País, na figura de seu presidente, assim o reclamasse. Mas a adoção dessa medida seria inédita mundialmente, já que, a partir da Convenção de Berna, de 1967, os países signatários, entre eles o Brasil, ainda que autorizados a limitar o licenciamento das obras, apenas poderiam fazê-lo em casos excepcionais, não especificados no texto da LDA, e desde que não causassem prejuízos ao titular do direito. Uma decisão unilateral brasileira colocaria o País sob o risco de sanções por parte de entidades como a Organização Mundial do Comércio.

Durante o processo de consulta pública, o MinC aceitou retirar o primeiro parágrafo do texto após ouvir o Grupo de Apoio Parlamentar ligado à música, formado em 2006 e integrado, entre outros artistas, pelos compositores Ivan Lins e Fernanda Abreu. Mas a redação final não é de conhecimento público. O anteprojeto, que fora enviado à Casa Civil em dezembro, está sob análise da diretora de Direitos Intelectuais, Marcia Regina Vicente Barbosa, que substitui na função Marcos Alves de Souza, o autor do texto inicial.

A urgência com que os artistas exibem suas apreensões é inédita, embora fosse esperada desde o início das conversas públicas em torno da lei, iniciadas há cerca de dois anos pelo MinC. Ivan Lins discorda que os músicos tenham evitado discutir a questão. “Não ficamos quietos”, argumenta à CartaCapital, ele que integra o Grupo de Apoio Parlamentar responsável por conduzir, entre outras questões, a lei de obrigatoriedade do ensino de música nas escolas, a vigorar a partir de agosto. “Nosso problema é a ausência do interlocutor certo, ao contrário do que ocorre com os cineastas, que podem, a rigor, contar com a Secretaria de Audiovisual só para eles”, afirma Lins. “A música, por sua importância e complexidade no Brasil, e especialmente após as inovações do acesso digital, exige uma instância de discussão só sua, que nós reivindicamos.”

Signatária do manifesto, Fernanda Abreu acredita que a reação dos músicos veio em seu tempo. “O ministério escreveu o que julgava correto e nós estivemos em nosso papel ao contestá-lo”, considera. “Àquela altura, como agora, não contávamos com alguém que pudesse dizer ao ministro, antes do texto pronto, que o setor musical era diferente dos demais e que, por isso, precisava ser ouvido particularmente.” Fernanda esclarece que toda a polêmica em torno de duas posições não a interessa, daí a razão de propor, no documento, uma terceira via para o entendimento do direito autoral.

“Queremos a democratização do acesso tanto quanto o quer o adolescente que baixa suas músicas na internet”, ela diz, reverberando a afirmação do diretor-geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, Francis Gurry, para quem as obras culturais devem ter preços acessíveis e ao mesmo tempo assegurar uma “existência econômica digna” aos criadores, intérpretes e parceiros de negócios que as ajudam a navegar no sistema econômico. “Por que desejaríamos a criminalização do usuário?”, ela pergunta. “Pelo contrário, esperamos aumentar o acesso às obras, desde que garantido o direito do autor neste processo. Atualmente, quem ganha ao acessar música na internet? É o Youtube, que negocia bilhões de dólares na bolsa, é a banda larga, são o Google, a telefonia celular, os iPods, iTones, iPads, a LG e a Apple, gente grande que precisará ser informada, com determinação, sobre nossos direitos não pagos.”

Para Ivan Lins, a obra do músico é fruto de um difícil e longo trabalho de autor, que deve ser protegido como qualquer outro. “De graça, só dou uma canção a alguém se eu quiser”, diz ele em paráfrase a uma frase atribuída à atriz Cacilda Becker que muito aprecia: “Não me peça para dar de graça a única coisa que tenho a vender”. Em tempos anteriores a 1978, Lins cedeu compulsoriamente seus direitos autorais a companhias como Warner e Universal, que até hoje detêm propriedade sobre sua produção do período. Recentemente, em gravadoras como a Som Livre, seu acordo de cessão é de apenas cinco anos. Após esse período, ele se vê apto a decidir sobre a reedição do próprio trabalho.

“Ana de Hollanda deu um grande empurrão nessa discussão”, afirma Carlos Mills, vice-presidente da ABMI, entidade que no fim do ano passado propôs a criação de um servidor central para arrecadar e distribuir os direitos autorais relativos a cada fonograma nele registrado e acessado pelo usuário de banda larga. Em uma pergunta respondida por e-mail a CartaCapital, no dia 2, Ana de Hollanda diz que a Diretoria de Direitos Intelectuais- poderia, após análise, avaliar a possibilidade de criação de um servidor específico para esse fim, mas que, pela lei atual, em relação à música, caberia ao Ecad a tarefa de arrecadar também pela internet. Em seu texto, a ministra não se mostra particularmente entusiasmada com a proposta de outro servidor, já que não vê possibilidade de arrecadação privada, senão pela controversa instituição.

O Ecad é o grande ponto a ser explorado dentro do complicado jogo de arrecadação dos direitos autorais no País, já que ainda supõe o braço de 12 sociedades arrecadadoras. O órgão foi criado em 1975 por pressão dos artistas. Sua atribuição de arrecadar e distribuir era, contudo, fiscalizada pelo Conselho Nacional de Direito Autoral, extinto durante o governo Fernando Collor. Ao CNDA também cabia, entre outras atribuições, gerir obras caídas em domínio público e arbitrar sobre a cessão de direitos de obras em parceria antes que as questões nessa área chegassem à Justiça. O órgão proposto agora ajudaria basicamente o Ecad a rea-lizar a contento a arrecadação e a distribuição segundo as novas tecnologias.

Para as entidades e os músicos que assinam o documento (a íntegra está no site http://brasilmusica.com.br/site/destaque/terceira-via/), o órgão é uma conquista e deve ser mantido. “O Ecad me pertence. Nada tenho contra ele, antes me orgulho de ter participado da luta por sua criação”, afirma Ivan Lins. Para o músico, se o órgão desviou-se de suas funções, se arrecada de forma pouco transparente a partir de antigas listagens de mais ouvidas e não por meio de técnicas atualizadas, isso ocorre, em parte, por culpa dos próprios artistas, que não pressionaram por mudanças. “Oitenta por cento dos autores nada sabem sobre como ele funciona, e a ignorância é a mãe de todos os males. O Ecad pode arrecadar mais se melhorar os critérios de distribuição. Temos de estar atentos.”

Fernanda Abreu ratifica sua visão. “É importante não demonizar o Ecad, antes vê-lo como um representante legítimo do direito do artista. No Congresso Nacional, há muita gente querendo acabar com ele, especialmente os donos de concessão de rádio e televisão inadimplentes, desinteressados de pagar o que devem aos autores.” Para Fernanda, o futuro da música está, principalmente, no entendimento entre sociedade civil, autores e o governo sobre a questão. “Enquanto discutem- lá embaixo autores e usuários, as empresas privadas, beneficiadas lá em cima pelo direito de autor, se fazem de mortas. O debate vai ser grande e enfrentaremos a pressão dos grandes grupos de comunicação. Mas nós a enfrentaremos.”

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Fonte: CartaCapital