A realidade dos cortiços é bastante complexa não apenas por causa do conjunto de situações precárias vividas por seus moradores – basicamente, espaços reduzidos e falta de qualidade de vida –, mas também pelas condições exploratórias dos valores dos aluguéis no acesso a essas moradias.

Parece inacreditável a constatação de que os problemas que existiam nos cortiços no início do século 20, conforme estudos e jornais da época, sejam os mesmos dos dias de hoje. Dentre eles, destacam-se a grande concentração de pessoas em pequenos espaços; um único cômodo como moradia; ambientes com falta de ventilação e iluminação; uso de banheiros coletivos; instalações de esgotos danificados; falta de privacidade; e o fato de comporem um mercado de locação habitacional de alta lucratividade.

Além desses aspectos, os cortiços mantêm as características de estarem, predominantemente, localizados nos bairros centrais da cidade, apresentarem diversas situações de ilegalidades e os seus moradores terem salários insuficientes para acessarem moradias adequadas. Os cortiços, diferentemente das favelas e de outras moradias precárias, quase não são visíveis na paisagem urbana, porque, em geral, são edificações que foram utilizadas como moradias unifamiliares, mas que atualmente abrigam dezenas de famílias. Logicamente, tornam-se visíveis sempre quando há interesse do capital imobiliário na região onde os cortiços estão instalados, porque seus moradores são os primeiros a serem expulsos. Nos últimos 20 anos, somente o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos acompanhou mais de 200 despejos coletivos de cortiços localizados nos distritos centrais.

Num estudo de 1998 [1] sobre o rendimento obtido nas locações e sublocações de cortiços localizados no bairro da Luz (aqui delimitado pela avenida Tiradentes, rua Mauá e avenida do Estado), pôde-se verificar a grande exploração que se dá no mercado de locação de cortiços, confirmando informações de outras pesquisas que demonstravam que paga-se caro para morar muito mal. Nesse perímetro, foram encontrados 92 imóveis utilizados como cortiços, onde residiam 765 famílias, com o valor médio de locação de R$ 13,2 por m2, valor que representava mais que o dobro que o de moradias unifamiliares com boas condições de habitabilidade localizadas no Centro.

Foi verificado que enquanto no mercado formal o valor mensal do aluguel representava cerca de 0,8% do valor do imóvel, nos cortiços pesquisados o explorador chegava a arrecadar mensalmente até 3,25% do valor do imóvel. O mais grave é que o percentual do rendimento crescia quanto maior fosse a precariedade do cortiço.

Em 2012, passados 14 anos, nova pesquisa [2] na mesma área com os 92 cortiços pesquisados em 1998 verificou que 44 imóveis (48%) deixaram de ser utilizados como cortiços e 48 imóveis (52%) mantiveram esse uso. Além desses, mais 56 imóveis passaram a ser utilizados como cortiços, totalizando 104 cortiços na área, um aumento de 13% em relação a 1998. Verificou-se também um maior adensamento: o número de famílias passou de 765 para 995, um crescimento de 30%. Esse resultado pode ser indicativo de um dos motivos que justifica o crescimento positivo dos distritos centrais, conforme o Censo IBGE 2010, que desde a década de 1980 vinham apresentando taxa negativa de crescimento.

Outros aspectos bastante relevantes encontrados na pesquisa atual são: crescimento da escolarização dos moradores, grande número de famílias de origens paraguaia e boliviana e altos valores cobrados na locação das moradias. É interessante observar que, por causa da irregularidade da documentação dos estrangeiros, o valor da locação é maior para os bolivianos e mais alto ainda para os paraguaios; algumas famílias estrangeiras pagam R$ 700 por pequenos cubículos. Se levarmos em conta o metro quadrado, concluímos que o valor da locação de moradia em cortiços, que em média possuem 12 m², continua sendo o mais alto da cidade de São Paulo.

Vale destacar um aspecto relevante apontado pela pesquisa de 2009 [3]: os resultados escolares apontaram que as crianças moradoras em cortiços possuíam quatro vezes mais chances de serem reprovadas quando comparadas com outros alunos da mesma série. A falta de espaço para dormir adequadamente, a insalubridade das moradias sem janelas, a rotatividade habitacional e a porta de entrada sempre aberta atingem diretamente o desempenho escolar das crianças. Ficou evidente que as condições precárias da moradia eram fatores de limitação para os estudos e geradoras de discriminação e segregação social e, consequentemente, de evasão escolar.

Um aspecto fundamental a ser apontado é que os trabalhadores de baixa renda tornam-se reféns dos exploradores de cortiços na medida em que buscam locais mais favoráveis ao trabalho ou próximos dos benefícios produzidos pela cidade.

Por outro lado, os moradores de cortiços tornaram-se importantes atores sociais quando formaram movimentos para reivindicar o direito à moradia digna no centro da cidade e, principalmente, quando utilizaram a estratégia de ocupar edifícios vazios. Isso porque denunciam a falta de política de habitação de interesse social para as áreas centrais da cidade e expõem as contradições do setor imobiliário, que deixa os imóveis abandonados sem função social aguardando valorização.

Apesar da luta e mobilização empreendidas nos últimos 20 anos, pode-se afirmar que as inúmeras expressões da precariedade das moradias, o comprometimento de grande parcela da renda e a segregação social que sofrem seus moradores são fatores que fazem com que os cortiços sejam um fator para reprodução da pobreza e ampliação da desigualdade social.

[1] KOHARA, Luiz Tokuzi. Rendimentos obtidos na locação e sublocação de cortiços: estudo de casos na área central da cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Paulo: EP USP, 1999.

[2] Pesquisa de Pós-Doutorado FAU/FAPESP de Luiz T. Kohara (em andamento).

[3] KOHARA, Luiz Tokuzi. Relação entre as condições da moradia e o desempenho escolar: estudo com crianças residentes em cortiços. Tese de doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2009.

(*) Luiz Kohara é membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, engenheiro-urbanista e pós-doutorando FAU/FAPESP.

 

Fonte: Carta Maior