“A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi anuncia o que será.”
Eduardo Galeano

 
Você ouve falar de chacinas contra meninos de rua e contra moradores de favelas. As chacinas fazem parte da história do Brasil. Você pode lembrar Canudos e que o Coronel Moreira César prometeu que iria salvar as mulheres e crianças que se rendessem, mas assassinou todas. Do massacre contra crianças do exército paraguaio de Solano Lopes na Guerra do Paraguai “liderada” por Caxias. O massacre dos escravizados que se refugiaram em Quilombos e ao serem encontrados eram todos mortos. A chacina de todo o bando de Lampião e Maria Bonita decapitados e todas as cabeças expostas nos postes para servirem de exemplo. O assassinato de Guarani Kaiowá ou de trabalhadores Sem Terra em Eldorado dos Carajás mais recentemente. As chacinas e massacres fazem parte da história do Brasil desde que o primeiro português chamou essa terra de colônia de Portugal.
 
Há 45 anos atrás, em 16 de dezembro de 1976, houve uma chacina que mudou a minha vida. A cada ano em dezembro, desde 1968, o Brasil tem duas tristes datas pra lembrar: a emissão do AI5 em 13 de dezembro de 1968 e em 16 de dezembro a Chacina da Lapa.
 
Talvez você não tenha ouvido falar da Chacina da Lapa. Lapa nesse caso é um bairro da cidade de São Paulo e chacina tirou a vida de 3 pessoas: João Drummond (preso, torturado e morto na véspera), Angelo Arroyo e Pedro Pomar. Outras foram presas Maria Trindade (militante responsável pelo aparelho), Joaquim Celso de Lima, Haroldo Lima, Wladimir Pomar e Aldo Arantes. Elza Monnerat e José Novaes estavam na reunião e conseguem fugir no momento da invasão. Ambos já tinham sido presos em outras oportunidades e Elza acaba presa novamente pouco depois.
 
Todos, com exceção de Maria, tinham em comum serem do Comitê Central do Partido Comunista que se reuniu em uma casa na Lapa. Eles e elas não sabiam que a reunião havia sido delatada à repressão da ditadura e seria invadida, pessoas seriam assassinadas, a cena seria modificada para as fotos da imprensa de forma a justificar os assassinatos por suposto confronto armado – exatamente como fazem com as chacinas nas favelas hoje – e os presos seriam torturados barbaramente.
 
Eu nasci em 06 de janeiro de 1976 e vivia na clandestinidade. No dia 17 de dezembro de 1976 eu era um bebê no colo de um pai e uma mãe que se preparavam pra “descer pra São Paulo” pra “cobrir um ponto”. Foram olhar o jornal e a foto de Pedro Pomar morto estava lá, na parte interna, no meio das notícias censuradas do Estadão. Por óbvio eu não lembro de nada disso e o que vou contar é baseado no depoimento da minha mãe. Eu queria que ela própria escrevesse sobre esses tempos, mas ela no auge dos seus 82 anos não quer ter esse trabalho e nem acha heróico o que fizeram: foram as consequências da vida que escolheram. Então vou colhendo fragmentos aqui e ali e registrando a história dela, a minha história, a história da luta pela democracia, uma pequena parte da história do Brasil.

 

Elenira (Foto: Arquivo Pessoal)

Pois é, havia bebês no meio dessa história. E crianças de todas as idades que sofreram violências muito variadas. Uma bela organização dos relatos desse ponto de vista na ditadura está no livro “Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil” editado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, em 2014, ano que se completavam os 50 anos do golpe empresarial militar.
 
Minha mãe e meu pai ficaram sem acreditar. Era difícil acreditar em uma imprensa vendida por um lado e censurada pelo mesmo lado. Eles podem ter forjado a morte. Eles podem estar vivos e presos, vivos e em qualquer lugar escondidos, mortos todos, mortos alguns… O que de fato houve?
 
Pedro Pomar era o único contato dos meus pais com a organização naquele momento, eles tinham uma tarefa muito interna e tinham o mínimo de contato mesmo com membros porque a queda (prisão) deles representava risco para muita gente. Depois da estupefação, eles precisaram tomar uma decisão: vamos ou não cobrir o ponto?
 
Decidiram contra todas as regras de segurança cobrir o ponto e alguns outros alternativos que estavam pré-agendados em caso de impossibilidade de cobrir o primeiro. Nas palavras da minha mãe “isso foi muito errado”. Em um ponto não havia muita conversa, se encontravam em um local público e caminhavam juntos por pouco tempo, as informações necessárias eram repassadas e o próximo ponto agendado. Havia que ser discreto, rápido, não chamar atenção, parecer um encontro normal, famílias com crianças ajudavam no disfarce.
 
Foram dois ou três dias descumprindo a orientação e tentando localizar. Nada.
 
Na cidade onde viviam a próxima decisão: é preciso desmontar o aparelho. O aparelho era a casa onde viviam, mas elas possuíam uma história que era contada aos vizinhos, nomes e documentos falsos, uma estrutura que permitisse cumprir a tarefa pra organização e uma vida que se vivia como se fosse normal. Se tinha contato com vizinhos, quitandeiros, a vida de aparência era calma, típica de cidades do interior. E, na maior parte do tempo, a parte da clandestinidade não ocupava o cotidiano para quem estava naquela posição deles. A não ser por livros e documentos que eram escondidos ou recebidos e depois queimados. Visitas, tratadas como parentes e que por vezes eram pessoas que tinham sido torturadas e tinham que se esconder, se tratar, se preparar pro exílio ou pra nova vida clandestina.
 
Mamãe lembra de que Pomar foi uma dessas visitas em casa nesse mesmo aparelho. Era um homem simpático, vivo, alegre, do tipo que brinca com as crianças. Mas reclamou do almoço. Todos da organização tinham uma situação financeira pra lá de precária e pouca comida. Ela, pra receber um dirigente importante e admirado, caprichou no almoço pra fortalecer alguém tão valoroso. Ele achou demais, era preciso ser comedido e viver como os demais. Elogiou o tempero.

 

Chacina da Lapa (Foto: Reprodução)

Era preciso ser rápido. Se alguém preso soubesse a informação de onde eles estavam podia acabar falando sob tortura e eles estariam com a vida em risco ou pior. Mas não se podia simplesmente sumir, porque isso levantaria suspeitas, poderia atrair a repressão e mesmo atrair essa perseguição para pessoas sem nenhum envolvimento com o enfrentamento à ditadura, como familiares ou vizinhos.
 
Mamãe e as crianças (eu e minha irmã, com 4 anos à época) voltamos pro Rio e fomos pra casa do seu sogro, meu avô. Era uma situação difícil, mas não tínhamos outro lugar pra ir, já que perderam completamente o contato com a organização e não havia plano B sem contato com Pomar. Isso já tinha ocorrido uma vez anteriormente.
 
Papai ficou mais tempo, para contar a história, arrumar a mudança, dar fim no que não podia ser levado, organizar o que podia para transportar, pouca coisa. Os tempos eram terríveis. Sem notícias de como estavam os demais do comitê central, especialmente o velho amigo e contato por mais tempo anteriormente, Haroldo Lima, sem saber como se proteger, sem saber como continuar a lutar, sem saber como não acabar preso, torturado ou morto. Sem dinheiro, meu avô que havia sido expulso do exército anos antes vivia trabalhando pra uma empresa que abriu com o genro que rendia pouco. Sustentar mais 4 assim de repente não foi nada fácil. Genro e filha (cunhado e irmã do meu pai) também tinham enfrentado o pior da ditadura naqueles tempos e ainda seguiam abalados. Minha avó tentava cuidar de todo mundo e se manter forte, me contou décadas depois que sofria muito, mas sem transparecer.
 
Passei meu primeiro aniversário com a família do meu pai no Rio. Entre adultos e dois primos. Uma única foto.
 
A chacina da Lapa foi devastadora para as famílias Pomar, Drummond, Arroyo, Monnerat, Lima, Trindade, Arantes… Foi devastadora para o PCdoB, que demorou muito tempo para reestruturar o comitê central e conseguir voltar a ter atuação coordenada e centralizada. Mudou o Brasil, enquanto outras organizações da luta armada iam caindo, se reestruturando e organizando outras táticas. Outras formas de luta se fortaleciam, como as vitórias do MDB em eleições, o crescimento do movimento contra a carestia e da organização de greves que pouco tempo depois explodiria.
 
Mas a Chacina da Lapa mudou nossa vida completamente. Viver uma infância sob tensão em clandestinidade, semi-clandestinidade ou medo da perseguição me mudou pra sempre. Nunca descobrirei exatamente como e quanto.
 
Lembrar para que jamais se repita!
 
Pedro Pomar, PRESENTE!
João Drummond, PRESENTE!
Angelo Arroyo, PRESENTE!
Hoje e SEMPRE!

*Artigo publicado originalmente no Brasil 247
**Elenira Vilela é Professora do Instituto Federal de Santa Catarina, líder sindical e do Partido dos Trabalhadores em Santa Catarina