Por que parte de nós, historiadores e pesquisadores, temos insistido para a abertura completa dos arquivos da ditadura de segurança nacional pós-1964 no Brasil? Porque não se trata apenas de um direito que assiste a quem estuda o tema, mas de todos aqueles que buscam a verdade sobre o que aconteceu no período, desde qualquer cidadão que almeje que esse passado recente não volte até os familiares que buscam os seus desaparecidos.

Mas uma parte de nossa ciência política, de nossos historiadores e jornalistas e outros interessados em manter o revisionismo sobre a ditadura e o terrorismo de Estado em nosso país não aceita uma narrativa que lhes incomoda. Foi desse segmento de opinião que vicejaram alegações sobre a “Ditabranda” (editorial da Folha de S. Paulo de 2 de fevereiro de 2009), também desenvolvidas por Marco Antônio Villa em Ditadura à Brasileira (Editora Leya, 2014) e seu inconsistente discurso de que nossa ditadura vigeu apenas durante o AI-5 (1968-1978). Somou-se a essas vertentes o jornalista Elio Gaspari e a sua clássica distinção entre a chamada “Linha Dura” e os sorbonnistas (os “moderados”) para explicar a transição pelo alto, a partir da “distensão” do ditador Ernesto Geisel e a “abertura” do ditador João Figueiredo, estes mais benévolos que os antecessores Emílio Médici e Arthur da Costa e Silva (sobre isso o historiador Gilberto Calil escreve o artigo O Revisionismo sobre a Ditadura Brasileira: A Obra de Elio Gaspari, publicado em Segle XX – Revista Catalana d’Història, em 2014).

Geisel, o presidente desconhecido

No artigo A Democracia Brasileira Não Foi Doada: A Resistência na Ditadura Civil Militar Brasileira (publicado emII Jornada de Estudos sobre a Ditadura e Direitos Humanos, orgs. Clarissa Alves e Enrique Padrós, Apers, 2013), procurei demonstrar que a chamada “distensão” foi o resultado político para enfrentar a crise oriunda do falso “milagre econômico” e a vitória do MDB nas eleições de 1974, enquanto a repressão e a eliminação física dos adversários não cessou durante o governo de Geisel.

Em 16 de março de 1974, David Capistrano da Costa, dirigente do PCB, foi morto sob tortura. Em 26 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nas dependências do II Exército, em São Paulo. Não satisfeita, a ditadura ainda eliminaria o operário Manuel Fiel Filho, no mesmo local, em 17 de janeiro do ano seguinte, enquanto, no Massacre da Lapa, ação coordenada pelo II Exército de São Paulo, foram fuzilados integrantes do Comitê Central do PC do B, como Pedro Pomar e Ângelo Arroio, em 16 de dezembro, depois sendo mortos na prisão João Batista Drumond, bem como a posterior prisão e tortura de Elza Monnerat, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Joaquim de Lima e Maria Trindade. Além de outros dirigentes políticos, lideranças indígenas e de luta pela terra foram presos, torturados e assassinados entre 1974 e 1985. O ditador Geisel ainda tem no currículo de seu governo o recesso do Congresso Nacional, em 1º de abril de 1977.

Assim, não foi com surpresa que recebemos a notícia sobre a descoberta, neste 11 de maio, de um memorando assinado pelo então diretor da CIA, William Colby, no qual mostra que Geisel autorizou a continuidade do terrorismo de Estado, incluindo as execuções sumárias e os desaparecimentos forçados como tática de eliminação física dos opositores da ditadura. Esse documento excepcional, descoberto por Matias Spektor, coordenador do centro de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no qual Geisel ordena ao chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), o general João Figueiredo, que lhe sucederia no cargo, que as execuções deveriam continuar, é mais um duro golpe no revisionismo historiográfico e mais uma prova de que as torturas e os desaparecimentos forçados não eram ações dos “porões”, mas orquestradas de cima para baixo, a partir da alta cúpula do governo e das Forças Armadas. Assim como já são conhecidos há tempos o financiamento empresarial da Operação Bandeirantes, articulada com o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e a sua institucionalização com o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), especialmente o de São Paulo, com o comando de extermínio de Carlos Brilhante Ustra, Freddy Perdigão Pereira, Sergio Fleury, Erasmo Dias e outros.

O mais importante desse tipo de documento (outros deverão vir à tona), além do que esclarecem por si só, é a demonstração da fragilidade histórica da reflexão revisionista sobre o final do “regime militar”, termo eufemístico cunhado pelos próprios ditadores, e a “transição pelo alto”, além de servir para recolocar no centro da interpretação a resistência e o processo da luta de classes contra a ditadura, a fim de se compreender os protagonistas de fato da redemocratização, esta tão ameaçada nestes dias que vivemos.

Diorge Alceno Konrad é Doutor em História Social do Trabalho pela Unicamp, professor da UFSM

Publicado em Zero Hora