Uma questão que consideramos essencial para o Partido Comunista do Brasil é a nova luta pelo socialismo. A grande questão do mundo, hoje, é esta: Qual a perspectiva? Indagação crucial que se apresenta no contexto de uma luta ideológica e política de grande envergadura. As classes dominantes, por intermédio de seu poderoso complexo midiático e cultural, disseminam que o socialismo “morreu”. Nestas circunstâncias, qual a perspectiva do Partido Comunista e dos revolucionários, hoje?

Século 20, como síntese

Questão que considero chave é que o socialismo nasce no século 20. Isso tem uma importância fundamental na nossa narrativa, já que a luta ideológica é feita de narrativas representativas. Primeiro: o socialismo não é resultante unilateral da vontade subjetiva das pessoas. O socialismo é uma exigência objetiva da história, ao dar os primeiros passos no século 20.

As experiências históricas de estruturação continuada de um sistema socialista, alternativo ao capitalismo, começam somente no século 20. A Comuna de Paris de 1871 foi apenas um primeiro ensaio revolucionário do proletariado nascente. Na celebre conclusão de Marx, “Um assalto aos Céus”.

A primeira experiência, portanto, a Revolução Soviética, durou pouco mais de 70 anos. É um tempo exíguo para prevalecer uma nova formação política, econômica e social na cena da história. Para prevalecer sobre o feudalismo, o capitalismo levou cerca de 300 anos.

Os modos de produção e os seus desdobramentos não superam seus precedentes na base de um salto direto. Isso não existe! Na evolução histórica da humanidade as novas formações políticas, econômicas e sociais exigem um tempo extenso para prevalecer.

A experiência soviética teve uma duração curta do ponto de vista histórico. Por outro lado, não é iminente a queda do capitalismo. Muitos prognósticos que apontavam o seu fim não se cumpriram, se revelaram apenas produto de uma vontade. Mas o que quero dizer é que, embora não seja iminente essa queda, objetivamente é crescente a incapacidade do capitalismo de responder – e resolver – às suas crises. Em verdade, ele só tem agravado a situação, surgindo grandes impasses, produtos de contradições básicas do próprio sistema capitalista que impede o avanço civilizacional.

O capitalismo é cada vez mais excludente. As desigualdades aumentam cada vez mais, a concentração do capital e da riqueza é sem precedentes, sobretudo depois da crise de 2008. É crescente o número de deserdados, de famintos. E a lei objetiva do desenvolvimento desigual do capitalismo atua gerando uma globalização de desiguais.

A denominada quarta revolução industrial se dá nos marcos do capitalismo. Mas o capitalismo é incapaz de dispor toda essa tecnologia gigantesca da produção a serviço de toda a humanidade. Pelo contrário, exclui ainda mais o trabalhador dos benefícios da inovação. Então, esse sistema social, esse modo de produção e suas relações de produção estão superados historicamente. Mas persiste no curso da história por imposições ideológicas, políticas e de poder, das quais ainda dispõe fortemente. É por isso que não se pode suplantar um modo de produção absoluto anterior simplesmente no “bafo”, ou num breve período histórico, mesmo através de uma revolução de grande alcance como a Revolução de Outubro.

Temos essa visão de que o socialismo nasceu no século passado, e continua. Ele não morreu. Em verdade, estamos diante de uma nova luta pelo socialismo desde o final do século passado, sobretudo agora no início do século 21.

Condições históricas para revoluções

Nós partimos da análise das experiências revolucionárias e do começo da construção do socialismo no século 20 – cheio que foi de revoluções, como a Revolução Russa e a Revolução Chinesa. Aliás, uma surgiu como desdobramento da Primeira Guerra Mundial, e a segunda como desdobramento da Segunda Guerra Mundial – o que evidencia que as grandes transformações não dependem só do processo e do desenvolvimento da luta nacional. Isso está imbricado também em um contexto do sistema internacional.

A revolução proletária no século 20 teve que se desenvolver e se consolidar em circunstâncias históricas concretas excepcionais. Tanto da Revolução Russa, quanto da Chinesa resultaram dilemas estruturais, porque havia um pioneirismo. Tais revoluções tiveram de desbravar caminhos e criar soluções inovadoras. Se olhassem para trás, o que encontrariam? Não havia quase nada. O ensaio da Comuna, que era muito pouco; a Revolução Chinesa; o exemplo russo. Mas com a capacidade que teve o Partido Comunista da China de não simplesmente copiar a Revolução Russa. Aliás, esse foi o grande êxito chinês: dominar as peculiaridades desse grande país asiático.

Erro grave deste primeiro ciclo do socialismo foi transformar a Revolução Russa em um exemplo universal, único para o mundo inteiro. Uma revolução extremamente singular e particular, num período excepcional, não poderia ser modelo único para o mundo todo. A China compreendeu isso em tempo, e na construção da nova sociedade passou por fases de experimentos.

A evolução da história mundial do século passado tem sido caracterizada pela implantação da revolução socialista na União Soviética, e o desmoronamento desta primeira experiência revolucionária – conforme assinalou o destacado historiador Eric Hobsbawm.

A nova luta pelo socialismo, por sua vez, transcorre no século 21 em um contexto mundial de profundos desequilíbrios e tensões. Transição de novos polos de poder, desigualdades econômicas e sociais que se agigantam, nova onda do progresso tecno-científico. De tal realidade emerge a exigência objetiva e subjetiva de uma nova luta que suplante o capitalismo hegemônico.

Experiências socialistas contemporâneas

Desse conceito de “nova luta pelo socialismo” buscamos interpretar o conteúdo e o curso das experiências socialistas contemporâneas. E também inúmeras lutas que eclodem nos países centrais do capitalismo e na sua periferia e semiperiferia, que contestam e se conflitam com esse sistema e sua expressão de domínio internacional, o imperialismo.

Vai ganhando corpo, cada vez mais, um processo de luta anticapitalista. Às vezes ainda pouco definido, ainda pouco expresso, mas é isso o que acontece.

Há, portanto, um conjunto de lutas que alimentam as jornadas do socialismo contemporâneo nos países centrais, afinal houve uma grande débâcle, com perda de direitos importantes – além da luta na chamada periferia ou semiperiferia, tendo como exemplo a Ásia e seu desenvolvimentismo específico.

A experiência contemporânea do socialismo são processos revolucionários que nasceram do século passado. Os dilemas decisivos para os projetos de sociedades socialistas atuais podem ser analisados a partir da experiência chinesa (“Reforma e Abertura”), desde 1978, que abre caminho para esse modelo recente empreendido pela China, o vietnamita (“Renovação”), desde 1986; e mais recentemente a cubana (“Atualização do Socialismo”), desde 2011. Trata-se da busca de alternativas próprias, singulares de cada país, que vem conseguindo superar os impasses estruturais e dar materialidade ao socialismo na atual quadra histórica. Nas visitas que fiz ao Vietnã constatei a afirmativa feita por seus dirigentes de que o “modelo soviético” estava “superado” em face do contexto específico do país e das condições internacionais.

Dou um depoimento. Eu estive em Cuba, há cerca de dez anos atrás, quando a liderança cubana estava definindo os “lineamientos” (diretrizes) do que seria o seu projeto de atualização e renovação – levando em conta a experiência chinesa, e mesmo a vietnamita. Hoje, a situação de Cuba é diferente. O governo e o Partido procuram fazer certas flexões estratégicas em função daquele caminho que seguiam antes, que tinha muita influência soviética, para definir novos passos rumo a novos estágios de desenvolvimento, sobretudo econômico.

O papel do Estado

Como construir o socialismo nas condições do mundo – neste início do século 21 –, e na realidade de seus países? Essas experiências revolucionárias, portanto, se distanciaram do modelo soviético de um período excepcional. O início delas teve como premissa a construção de um Estado de caráter nacional, democrático e popular. Foi o que aconteceu na China, no Vietnã e em Cuba. O Estado com esse caráter é hegemonizado pelas forças interessadas na transição a uma nova sociedade, como trabalhadores, camadas médias e até setores da classe dominante. Na China, Mao Tsé-tung sempre levou em conta inclusive a chamada burguesia nacional chinesa, na construção econômica, ou setores dominantes “sensatos”. O Vietnã fez uma Frente ampla naquela sociedade, levando muito em conta uma visão nacional própria deles. Portanto, eram Estados já dirigidos pelas forças revolucionárias vitoriosas.

Ponto candente desse debate, sobretudo aqui no Brasil, é a questão nacional, independência e soberania. A questão nacional é primordial, tanto para a conquista do poder, quanto para a construção do próprio socialismo através da formação de um Estado nacional, democrático-popular. Não vejo como avançar na experiência socialista sem esse Estado soberano, democrático, popular e poderoso. É evidente que esses Estados surgiram como produto da revolução, que têm uma forte base social, e não voltaram atrás. Pelo contrário, no Vietnã há um Estado poderoso. A China, hoje uma potência mundial, tem um Estado poderosíssimo.

O Estado nacional soberano e democrático tem um papel fundamental. Isso é decisivo para os projetos socialistas, assim como para os projetos nacionais anteriores ao socialismo. Hoje, portanto, o exemplo mais destacado é a China – uma estrutura de forte Estado nacional soberano, que se torna uma grande potência mundial, já sendo a maior economia do mundo, medido o Produto Interno Bruto (PIB) pelo critério da paridade do poder de compra (PPC).

Traços tradicionais da nova sociedade

Há duas questões que enriquecem o debate sobre o socialismo contemporâneo. Marx na Crítica ao Programa de Gotha delineia que o socialismo é um extenso período histórico da transição entre o capitalismo e o comunismo. Muitas vezes perde-se de vista essa questão. Ele definiu nessa transição socialista um princípio distribuidor da riqueza, que faz parte do direito burguês: “De cada um, segundo suas capacidades, a cada um, segundo seu trabalho.”

Nessa longa transição, vão existir variadas formas de propriedade. Na chamada economia mista persiste o mercado, resultante da sociedade capitalista, sendo agora conduzido pelo Estado socialista, tendo o trabalho como medida da distribuição da renda e da riqueza, porque “é de cada um, segundo a quantidade e a qualidade desse trabalho.”.

É também de Marx a visão de que a nova sociedade nasce das entranhas da velha sociedade. Indago: Após a implantação de um novo poder de Estado, acaba aquela velha sociedade, seus valores e instituições, e a partir daí começa tudo novinho? Isso imaginado dentro de uma visão muito primária do processo transformador. Pela compreensão real, o processo e os saltos desse desenvolvimento social saem das entranhas da sociedade anterior.

Mesmo mudanças na infraestrutura econômica e social não refletem em mudanças automáticas na superestrutura, e menos ainda na consciência social. Essa consciência social, com muitos valores enraizados na sociedade anterior, persiste durante longo tempo.

A segunda questão é o contexto histórico. O socialismo em todas as experiências, até agora, sobretudo as que irrompem no século 20, ocorre em sociedades capitalistas relativamente atrasadas ou pré-capitalistas, impondo às forças dirigentes da revolução a tarefa primária de se criar ou desenvolver a riqueza material. É impossível socializar uma riqueza que não existe. Por isso, sobretudo nas sociedades atrasadas, a importância da centralidade do desenvolvimento das forças produtivas. Sem isto é impossível criar e prosperar um regime superior ao capitalismo, cuja base material é mais atrasada que as sociedades capitalistas desenvolvidas.

É preciso compre-ender, portanto, que a construção do socialismo no curso histórico contemporâneo – tanto nas experiências atuais, quanto nas passadas – reside no fato de o socialismo existir e operar dentro dos marcos de uma economia globalizada, hegemonizada pelo capitalismo e seus monopólios produtivos e financeiros. Ou seja, as experiências já nascem cercadas de capitalismo por todo lado. Não foi, e não se deu, aquilo que Marx previa: que o socialismo surgiria nos países capitalistas mais desenvolvidos com a base material suficiente para se ir adiante numa sociedade superior ao capitalismo.

Foi acontecer nas sociedades capitalistas mais atrasadas. No interior da China havia um pré-capitalismo. No Vietnã, também. Mesmo na Rússia, o capitalismo foi um processo tardio. Isso porque as etapas iniciais do socialismo estão envoltas em condições objetivas e subjetivas do capitalismo. E aconteceu em sociedades cujas base material e riqueza social eram ainda escassas. Portanto, essa conclusão me parece importante para compreendermos, hoje, as formulações do socialismo contemporâneo.

Tentativa e erro

A construção da sociedade pós-capitalista é um gigantesco processo de aprendizagem. Trata-se de construir uma sociedade inteiramente nova num curso inédito que, inevitavelmente, implica tentativas e erros. E as condições objetivas históricas nacional e internacional, quando se realiza o processo revolucionário, podem levar a diferentes alternativas de como viabilizar o empreendimento da construção da nova sociedade.

Por exemplo, a Rússia soviética, nos primeiros 20 anos, passou por três experimentos, três modelos postos em prática: o comunismo de guerra; a Nova Política Econômica (NEP), o novo plano econômico; e o terceiro, que acabou prevalecendo: a estatização e a coletivização acelerada. Foram necessárias, portanto, duas décadas para que a Rússia viesse a adentrar ao processo que a tornou uma das maiores potências do mundo. Um processo que desabou apesar dos grandes e extraordinários avanços que conseguiu.

A China é que deu os primeiros passos para a configuração: a transição ao socialismo na época atual. Durante 30 anos, desde 1949, conforme eles mesmos dizem, os chineses descreveram um “ziguezague” em busca de um caminho que conduzisse o país ao desenvolvimento. Só em 1978 conseguem abrir esse caminho, com o modelo encontrado por Deng Xiaoping, com o qual, de uma certa forma, podemos fazer uma analogia com a NEP de Lênin, de 1921 – guardadas as diferenças geopolíticas e históricas da época.

A China, portanto, encontrou a saída, em 1978, com a linha da reforma e abertura compreendida nas quatro modernizações de Deng Xiaoping, após quase uma década de instabilidade, resultante da revolução cultural proletária. Nesse período, eu vivi seis meses na China. Presenciei de perto os grandes conflitos entre camponeses e trabalhadores da cidade.

Dois estudiosos do socialismo, Domenico Losurdo e Luis Fernandes, traçam paralelos entre o projeto de Deng Xiaoping e a NEP de Lênin, guardadas todas as diferenças históricas. Elias Jabbour, outro pesquisador, acrescenta que 1978 foi uma fusão entre dois Estados: o Estado revolucionário de Mao Tsé-tung, vitorioso em 1949, com o desenvolvimento de tipo asiático a partir de 1978. Mostra que o tipo de capitalismo de Hong Kong, Taiwan e Japão, que suplantava a China, formou um contexto histórico e econômico que levou o gigante comunista a tomar o rumo atual de seu desenvolvimento na busca da construção da nova sociedade, nas condições peculiares da China.

O socialismo é riqueza social, segundo Marx. Sem isso o que se pode conseguir então é distribuir miséria – um ultraigualitarismo sem futuro. O resultado, portanto, dessas reformas iniciadas em 1978 tem sido impressionante. Trata-se de trajetória prolongada e sustentada de desenvolvimento, há quase quatro décadas, sem precedente na história moderna. Quem proclama isto são especialistas e instituições de alta reputação que pesquisam a China.

O fenômeno chinês marca a profunda transição atualmente em curso na própria ordem mundial. O sistema internacional vive uma transição com novos polos de poder que começam a se impor. A China emerge de potência regional para potência mundial. Esse caminho seguido por ela vem estruturando um amplo e sólido sistema nacional de desenvolvimento tecnológico e de inovação, superando o monopólio ocidental. Ela consegue acelerar a disseminação do progresso técnico na sua economia, e nos mostra que realiza o que a União Soviética não conseguiu alcançar. Aliás, foi um dos fatores da débâcle, um dilema estrutural não resolvido pela URSS. Afinal, um novo sistema econômico e social que surja precisa suplantar a produtividade econômica do anterior, senão ele retrocede. Assertiva já enunciada por Lênin.

A teoria e a prática da transição na contemporaneidade

O aprofundamento dos dados empíricos, análises multilaterais e o desenvolvimento teórico dão elementos para o debate acerca da compreensão do socialismo contemporâneo e sua perspectiva, seja da China, do Vietnã, seja de Cuba.

A experiência chinesa – dimensão, êxito e, também, dilemas –, como não poderia deixar de ser, suscita reflexões teóricas e busca uma sistematização da realidade que surge da transição lá ocorrida. Os chineses afirmam que o país atravessa fases da etapa primária do socialismo, cujo fundamento básico é o “socialismo de mercado”.

A China, portanto, desde 1978 passa por mudanças de vulto. Como defende o pesquisador Elias Jabbour, já existem indícios teóricos e empíricos suficientes para dizer que o socialismo de mercado se constitui como uma “formação econômica e social distinta” do curso clássico dos modos de produção. A crise de 2008 e as novas configurações do Estado chinês teriam acelerado esse diagnóstico. Trata-se de uma afirmação teórica ousada, que enriquece o debate.

O que o referido pesquisador quer dizer com isso? Há uma compreensão básica de que o mundo passou pelo comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e o capitalismo, basicamente. Jabbour quer introduzir, entre o capitalismo e o socialismo pleno, um estágio de desenvolvimento que ele denomina de “socialismo de mercado”. Isso teria surgido da tentativa de construir uma nova sociedade em países capitalistas relativamente atrasados. Se tivesse surgido, como Marx previa, nos países capitalistas mais desenvolvidos, a situação talvez fosse outra.

Não estou concordando ipsis litteris com essa tese. Mas, entra uma nova categoria importante no debate. O que quero dizer com isso é que na China a evolução dos acontecimentos demonstra que as reformas econômicas e institucionais, a partir de 1978, levam a um gigantesco crescimento econômico, e a transformações profundas na sociedade. O investimento gigantesco da China ainda está na ordem de mais de 40% de seu PIB. Em torno de 600 milhões de chineses saíram, em curto espaço de tempo, de áreas rurais para urbanas, e as camadas pobres reduziram-se significativamente.

Imaginem, no Brasil: aqueles que saíram da zona rural, também em tempo curto, incharam as cidades, gerando enormes problemas estruturais e sociais, em grande medida perdurando até hoje, devido à falta de planejamento urbano. Ao contrário na China, a crescente urbanização, sob planejamento central, conseguiu um deslocamento gigantesco da população para zonas urbanas existentes, e sobretudo com a formação de novas áreas urbanas grandes, médias e pequenas, evitando um grande caos.

Essa situação alcançada faz parte, desde o início, do ciclo de reforma e abertura, no qual o Estado planeja as etapas do desenvolvimento e da instauração de inovações institucionais correspondentes. Aliás, esses ciclos de desenvolvimento têm resultado de um planejamento de médio e longo prazos, como foi demostrado por Xi Jinping, no recente XIX Congresso do Partido Comunista da China. Ou seja, isso não surge de agora.

A imprensa burguesa faz parecer que o presidente Xi Jinping – ao reafirmar o plano que já estava estabelecido desde antes, numa primeira etapa indo até 2035, e numa segunda etapa até meados do século – demonstra querer ficar longo tempo no poder. Essa mídia procura distorcer a ordem política instaurada na China e dar a sua versão preconceituosa. Lá, as gerações no poder central, institucionalmente estabelecidas, têm uma carência de dez anos, quando são substituídas pela nova geração. A cada dez anos, sai toda a cúpula dirigente. A continuidade é dada por um líder que vem da geração anterior, que assume a função maior no Partido Comunista da China, e na República o posto mais elevado, como o presidente desta. E este completa o seu papel durante uma década.

É a forma política encontrada para a construção da nova sociedade chinesa na época atual. Sabiamente, os chineses não se sentem obrigados a copiar o liberalismo político do Ocidente capitalista. As formas políticas, jurídicas e institucionais de uma sociedade pioneira, na formação que suplante o regime capitalista, levam muito tempo para se aperfeiçoarem e se consolidarem em um Estado socialista de direito. O capitalismo levou uns 200 anos para isso.

É preciso relembrar uma questão importante: a revolução popular na China desalojou a burguesia e os senhores de grandes propriedades rurais do poder do Estado. A burguesia teve um papel importante na China, ajudando no desenvolvimento, mas deixou de ter o poder de Estado. Na União Soviética a força revolucionária, o proletariado, aquele que conquistou o poder por meio da revolução, foi sendo destituído do poder, culminando com o fim da URSS em 1991. Uma situação é depor a burguesia do poder de Estado. Outra é desapropriá-la, porquanto ainda pode ter função importante no plano do desenvolvimento econômico. Posição defendida por Mao Tsé-tung no processo da Revolução Chinesa.

Então, quem tem o poder é a força revolucionária, tanto na China, quanto no Vietnã ou em Cuba. Agora, comentando o XIX Congresso do PC da China, Scott Kennedy, vice-diretor do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais de Washington, simplesmente reforçou “que a China não caminha para uma convergência com o capitalismo ocidental.”. E, ao contrário dos que dizem que há uma restauração do capitalismo na China, afirma ele: “é um sistema híbrido” – isto é textual –, “é conduzido por uma lógica socialista estatal diferente e perdurará enquanto o Partido Comunista da China estiver no poder.”. Portanto, não bastam as aparências ou os sintomas para se distinguir a essência das formações políticas e econômico-sociais, como no oceano em que as correntezas maiores não aparecem na superfície.

Política estratégica na prática

A decorrência da evolução dos acontecimentos na China revela que o Estado planeja os ciclos do desenvolvimento e das inovações institucionais ligados à política do poder e à economia. Outro fator que confirma este aspecto do regime chinês é a formação dos grandes conglomerados empresariais estatais nos setores estratégicos da economia, que executam as grandes políticas de Estado.

Esses grandes conglomerados exercem na prática a política essencial do governo central. Esses conglomerados entram em todos os setores sensíveis ou modais da economia: o sistema energético, o petróleo, o sistema de comunicação, as áreas estratégicas da tecnologia de ponta e da defesa nacional. São mais de 160 conglomerados, além do controle estatal da área financeira e do comercio exterior.

As três principais vertentes das grandes lutas contemporâneas

A conformação desse socialismo contemporâneo na sua etapa atual é que está no centro dessa nova luta pelo socialismo que poucos percebem. A luta ideológica imposta pelas grandes potências capitalistas tenta moldar um senso comum baseado na sua prédica neoliberal de que na China não há “democracia”, prevalecendo um “regime autoritário”, e na economia há um arremedo de capitalismo. Conseguem paralisar ou colocar na defensiva várias correntes e vários setores da esquerda diante dessa narrativa, cuja essência é a defesa de eternidade do capitalismo e da sua ideologia liberal.

Resumidamente, hoje, na época contemporânea, podemos definir três grandes lutas que, de certo modo e forma, estão na linha de uma nova luta pelo socialismo. O filósofo italiano Domenico Losurdo fala em duas grandes lutas, mas eu considero três.

Uma luta se dá em meio ao movimento dos trabalhadores e forças avançadas nos países capitalistas mais desenvolvidos, contra o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social e na busca de um caminho que possa descortinar horizontes para superação do sistema capitalista. Essa é uma luta fundamental hoje na Europa e nos Estados Unidos, onde a desigualdade social retrocede a patamares anteriores à Segunda Guerra Mundial.

Os direitos alcançados, por exemplo, pelo povo francês depois da Segunda Guerra Mundial são muitos significativos. Eles estão perdendo quase tudo. Novamente, recorro a um depoimento próprio para exemplificar. Vivi quatro anos na França, como exilado, em meados da década de 1970. De uma casa que nós alugamos nos arredores de Paris, o governo ajudava até a contratar um aluguel de três quartos, porque tínhamos um filho e uma filha, e cada um tinha que ter o próprio quarto. E o carteiro ia entregar no meu apartamento, mensalmente, parte do valor do aluguel em dinheiro vivo. Faço este registro, porque não imaginava direitos como esse. Então, a luta para a reconquista dos direitos perdidos na Europa é fundamental. A crise da globalização neoliberal tem provocado crescente mal-estar no seio dos trabalhadores e das camadas populares. Essa perda de proteção social se refletiu nas eleições na França, nos Estados Unidos, tanto quanto o Brexit no Reino Unido.

A outra grande luta que alcança crescente avanço é relacionada ao modo de projeto nacional de desenvolvimento, muitos deles vinculados ao desenvolvimento regional, nos países da semiperiferia e da periferia do sistema capitalista. Caminho cuja condução cabe às forças consequentes populares e nacionais. A bandeira da defesa nacional e de um projeto nacional com base popular pertence à esquerda. Exemplos importantes do avanço desses projetos nacionais, com Estados nacionais soberanos e fortes, na sua condução, livrando-se do rentismo, estão na Ásia.

Os países dependentes do centro capitalista na divisão internacional do trabalho estão sujeitos ao domínio estrutural neoliberal e imperialista das grandes potências capitalistas. Esse domínio impõe grandes obstáculos ao desenvolvimento autônomo, à democracia e ao progresso social desses países dependentes.

Por isso, a questão nacional ocupa uma centralidade, na qual a salvaguarda da sua independência, a autodeterminação política e econômica são essências na aplicação de um projeto de desenvolvimento autônomo e próprio. Pressuposto, inclusive, para o progresso social e respaldo para avanço da causa democrática. Tais condições podem permitir a formação de um bloco politico condutor, nas condições históricas atuais, numa aliança nacional-popular-produtivista e de avanço democrático.

No programa do PCdoB, desde 2009, já indicávamos a centralidade de novo projeto nacional de desenvolvimento, como o caminho estratégico para alcançarmos a transição ao socialismo no Brasil. O pós-golpe de Estado no Brasil, no qual o consórcio da classe dominante tomou o poder nacional, em 2016, por um atalho, gesta a instauração de uma ordem que desmonta as bases iniciais de um projeto de desenvolvimento nacional em consonância com a integração regional.

O país, sob a condução de um governo impostor, passa a se submeter à imposição neoliberal e imperialista e ao realinhamento geopolítico determinado pelos Estados Unidos e União Europeia, contrário à tendência à multipolarização no sistema internacional. Assim, a luta pela retomada de um novo projeto nacional de desenvolvimento mais ainda se impõe.

E, por fim, a terceira grande luta, ainda incompreendida por correntes e setores da esquerda. A luta no âmbito mundial, cuja vanguarda são os países que se empenham na construção da perspectiva socialista contemporânea, capazes de reduzir a desvantagem e o atraso em relação aos países capitalistas mais desenvolvidos, sendo a China a experiência mais avançada. Realidade e frente de luta expostas em diversas facetas nas descrições acima.

Estas três grandes lutas estão de diferentes modos e formas no âmbito das formações que possam suplantar o domínio da hegemonia e vigência do capitalismo. E as experiências socialistas contemporâneas estão no curso de abrir caminho para a retomada de um sistema social que suplante o modo de produção e as relações de produção capitalista. O sistema capitalista se torna cada vez mais defasado para enfrentar os grandes problemas da nossa época, tornando-se um motor de retração das transformações sociais, um imenso paredão que barra o avanço civilizacional. Do ponto de vista histórico, o capitalismo já era para ter ido embora, mas persiste ainda na cena da história pelo peso do seu poder, dominância política e ideológica e por valores arraigados em séculos, próprios de uma sociedade velha, alquebrada, que se mantém de pé. Portanto, uma nova sociedade, socialista, ainda precisa se impor no limiar da sua existência, abrindo uma nova época.

* Renato Rabelo é presidente da Fundação Maurício Grabois. Foi presidente do Partido Comunista do Brasil – PCdoB entre 2001 e 2015