Só os muito incautos ou os muito mal intencionados não admitem que o que se passa no Brasil, há pelo menos dois anos, é um processo golpista. Desde que o Senado brasileiro aprovou o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, vários episódios explicitaram ao país as verdadeiras razões do golpe impingido à democracia nacional. Não vale a pena recapitular aqui tais episódios. Eles são bizarros: de Frota no MEC a Jucá gravado, passando pela figura sinistra de um Gilmar Mendes visitando na calada da noite o interino golpista ou pelo juiz Sérgio Moro, desde o dia 17/04 acometido por uma estranha síndrome de avestruz.

Esses e outros fatos já são largamente conhecidos do público pela repercussão que tiveram nas redes sociais e mesmo na imprensa tradicional. Sabemos todos os ingredientes verdadeiros do movimento que apeou (ao menos temporariamente) Dilma e o PT do poder. De cabeça, é fácil levantar ao menos os principais, que dinamizam a narrativa golpista: a grande pressão do capitalismo transnacional, a decisiva interferência na geopolítica da América Latina protagonizada pelos EUA, a intensa fabricação de consentimento anti-esquerda pelo oligopólio da mídia vendida, o legislativo corrupto e vendido aos interesses mais espúrios de um capitalismo periférico, uma regressão conservadora dos costumes, o desespero de uma máfia política que é composta por ratos que habitam os porões da nova república desde as primeiras eleições diretas depois da ditatura militar, o conjunto significativo de erros e problemas dos governos dirigidos pela coalizão de centro-esquerda nesses últimos anos.

Se esse movimento precisava de prepostos, de vis rábulas do direito pactário, encontrou-os especialmente em dois velhacos do poder brasileiro, representantes do dinheiro grosso que decide os destinos do país, na falta de um plano nacional e popular construído junto com a população. São eles: Michel Temer, um ficha-suja que nem sequer pode se candidatar a uma eleição de vereador, e Eduardo Cunha, nossa melhor expressão tupiniquim de mafioso entranhado no Estado. Eis, pois, os protagonistas do golpe: os endinheirados do país e seus títeres políticos, junto com uma massa irreflexiva de tendência fascista que compõe o exército sonâmbulo da pequena burguesia brasileira, que mirando-se no exemplo dos ricaços que admira faz da sua vida uma valsa entre os verbos consumir e odiar.

Em pinceladas rápidas, temos aí o retrato cômico-trágico de um golpe travestido de “solução” de crise econômica política e institucional, capitaneada pelos de cima, num clima de república de bananas.

O resultado almejado pelo golpe, pelas ações do Governo ilegítimo e temporário que age como definitivo, é tomar o poder e reconduzir o país de modo cabal rumo ao retrocesso em várias frentes da vida brasileira. Retrocesso econômico: implantação radical da pauta neoliberal, que além de espúria porque vendida aos interesses dos poderosos, é retrógrada pois não aponta para um esquema de reindustrialização que sustente a médio prazo algum crescimento para o país. Retrocesso político: salvação geral e irrestrita dos corruptos que sustentam, na base da negociata semicolonial, uma democracia burguesa arreganhada aos donos do capitalismo brasileiro, que é viciado em dinheiro público, além, é claro, da aposta na insidiosa trama política da nova república. Retrocesso social: também chamado de desagregação social, pautada na máxima do “liberalismo” periférico de que o Estado tem de ser mínimo, mas deve ajudar primeiro os que já têm ajuda, ou seja, nada de cotas, de bolsas, nada de saúde e de educação públicas e de qualidade. Retrocesso humano: basta lembrar o que desejam fazer os adeptos do Escola sem Partido, os que atacam a lei do aborto, os que criminalizam movimentos sociais, as religiões de matriz africana, os que acham que o índio deve ser convertido, apostam no criacionismo e julgam os gays uma aberração da natureza.

Ora, esse é o jeito ilegítimo, violento e conservador de a elite brasileira tentar se recolocar social e politicamente nos quadros de uma transformação que o capitalismo mundial vem sofrendo há alguns anos e à qual podemos chamar de “a mais grave crise sistêmica desde 1929”. As crises reconfiguram posições econômicas, rearticulam forças políticas, transformam e preparam o mundo material para uma nova quadra histórica. Não podemos deixar de considerar isso. Estamos em um novo limiar histórico, em termos locais e em termos globais. O sistema-mundo espreguiça-se para um novo dia de exploração e mais valia. O golpe de Estado perpetrado pela elite econômica brasileira é um arranjo de reposicionamento nessa iminente nova etapa da história. Não podemos perder isso de vista, senão veremos, nós que não lucramos com a crise, ainda mais constrito o nosso lugar nesse alvorecer de nova fase da decadência do capitalismo. Se perdemos essa noção, não conseguimos pensar no pós-capitalismo. 

Há para nós tarefas urgentes, imediatas, mas há também tarefas de longo prazo. Resistir ao golpe é nossa tarefa urgente. Denunciar a cada oportunidade esse movimento conservador e ilegítimo é nossa tarefa imediata. Articular o retorno da presidenta eleita ao poder é fundamental agora. Nossas forças precisam estar concentradas nesse compromisso, até porque ele pode nos ajudar a viabilizar uma outra tarefa maior, que é a reunião e a concentração das forças do campo progressista da sociedade. A luta política é uma dimensão da formação humana, ela é um espaço de aprendizado sobre nós e sobre nossos destinos.

A luta contra o retrocesso é dos movimentos sociais, dos trabalhadores e das trabalhadoras, dos partidos políticos da esquerda, dos intelectuais, do movimento LGBT, dos indígenas, dos sindicatos, da juventude que ocupa as escolas, dos artistas que ocupam os teatros. A esquerda sempre teve dificuldade de articular setores em divergência dentro do seu espectro vário de propostas teóricas, intenções e práticas. Essa é a primeira dificuldade que precisaremos aprender a superar se quisermos fazer frente ao aguerrido ataque das forças conservadoras ao país que nos diz respeito. Precisamos, com nossas diferenças, saber formular uma alternativa concreta, saber construir um projeto de país popular para responder à crise em que a especulação financeira nos meteu há oito anos. Quem os inimigos? A resposta a essa pergunta, desde a redemocratização brasileira, jamais esteve tão clara.

Não vejo horizonte possível para uma ação emancipatória de longo prazo, que faça frente ao retrocesso que aceleradamente o Governo Temer propõe sem que consigamos mobilizar (as ruas, as casas, as salas de aula, os locais de trabalho, as redes soaciais) em torno de duas causas imediatas: o retorno de Dilma e a proposição de um plebiscito sobre novas eleições, que confira nova legitimidade aos poderes da nossa frágil democracia. Esse processo pode acelerar um pouco nossa resistência ao retrocesso. Para conseguir isso, todavia, precisaremos aprender a reinventar as formas de participação política. E teremos de aprender isso na prática, para já e para depois, sob pena de sermos engolidos por uma longa noite de fascismo neoliberal.

A Nova República se esgotou, ou formularemos com os espoliados pelo neoliberalismo o passo seguinte da ordenação político-social do país, ou veremos, mais uma vez, o poder dos endinheirados comandar movimento do Brasil no rumo da nova quadra do capitalismo. 

Fico sempre muito animado com nossa capacidade de organização, de mobilização, nossa criatividade ao protestar, com o humor e a alegria sempre presentes, pois sabemos que quem odeia e faz cara feia não constrói um mundo melhor. O trabalho político cooperativo, horizontal e agregador que gere, entretanto, uma transformação prática e não apenas resistência (o que já é muito, mas não basta) é o desafio que está posto à nossa geração. Se não formos capazes de fazer essa maturidade social que atingimos gerar frutos de intervenção no concreto das relações políticas, dificilmente a próxima geração poderá usar tão bem quanto nós os verbos “resistir” e “transformar”. A multiplicidade de tendências que compõe o campo das esquerdas precisa ser entendida como a riqueza que dá mais força à resistência política. Inventar uma verdadeira “nova política” que as reúna num movimento amplo de construção de uma ideia futura de país será, talvez, a grande lição do Brasil aos golpistas de hoje e de amanhã.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.