No dia 30 de março de 1999 o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, assinou um decreto (3007) revogando um outro decreto, do ditador Ernesto Geisel, (80419) de 27 de setembro de 1977 que promulgava o Decreto Legislativo (DL) 66, aprovado pelo Congresso Nacional. Não houve publicidade sobre o assunto.

Contudo, muito estava em jogo ali. Primeiro, uma peculiaridade jurídica do Brasil. O DL 66 aprovara uma Convenção internacional, incorporando-a ao Ordenamento jurídico brasileiro. Como pode um presidente revogar um ato votado pelo Congresso Nacional com uma canetada?

Segundo, o acordo internacional aprovado pelo Congresso fora a “Convenção Regional Sobre o Reconhecimento de Estudos, Títulos de Diplomas de Ensino Superior na América Latina e Caribe” (Cidade do México, 19 de julho de 1974), havendo o instrumento brasileiro sido depositado junto à UNESCO.

Um pouco confuso na aparência, mas o importante é saber que sob Fernando Henrique Cardoso e Paulo Renato, a educação brasileira passou a ser, definitivamente, um serviço, um “bem” a ser comercializado no mercado, seguindo regras de mercado. Muitas faculdades privadas foram abertas nesse período, muitas delas ligadas a políticos influentes e a grupos econômicos sem compromisso com a educação. Até multinacional há nesse meio. Quantos bilhões renderam a “canetada” de FHC? Para quem?

Até ali, vários formados alhures retornaram ao Brasil e foram autorizados a exercer sem maiores problemas. Inclusive os que foram a Cuba.

Tempo de Crises e Premissas

Da miríade de demandas e assuntos que se misturaram nas últimas manifestações públicas ocorridas no Brasil, um dos mais complicados de se abordar, em um espaço relativamente resumido, é o da abertura para a entrada de médicos formados em universidades de outros países. Várias pessoas têm me perguntado sobre o assunto e vários alunos me escreveram pedindo que me aprofundasse um pouco no tema. Alguns poucos estudantes meus se manifestam convencidamente em favor do projeto do Governo, outros estão apreensivos e inseguros, pensando, talvez, que a profissão que os espera já não mais será a que tinham em mente quando se decidiram por ela. A maioria deles, contudo, aderiu ao discurso das entidades ligadas aos médicos e o repete. A complexidade do tema jaz na variedade de interesses institucionalizados, na jovem história da Academia no Brasil, na consciência de corporação dos médicos e na própria identidade nacional dos brasileiros.

Como se verá, o Governo decidiu drenar um abcesso. As dúvidas são duas. A primeira é se ele será um cirurgião capaz de levar a operação até o final, sem medo de tocar em todos os órgãos afetados ou se ficará na superfície, desperdiçando a chance de tratar devidamente o paciente. A outra é se o paciente tem interesse em se tratar, de ser ativo no seu processo de cura, pois ao médico cabe o papel de auxiliar.

Para analisar o problema com mais objetividade, deve-se fazer um recorte e algumas premissas devem ser aceitas. A primeira é que as pessoas precisam de médicos e a segunda é que os médicos podem contribuir mais para a saúde do que para o adoecimento dessas pessoas. Podem parecer triviais essas afirmações, mas não são. Se se quer saber o motivo, recomendo o estudo de Ivan Illich, Nemesis Medica; Barbara Starfield (professora emérita da Johns Hopkins, consultora da OMS. A Professora Starfield tem um importante livro editado no Brasil pelo Ministério da Saúde, no qual demonstra que os médicos especialistas são terríveis para os sistemas nacionais de saúde. Ela chega à conclusão de que os Estados Unidos têm a pior saúde dentre as nações do primeiro mundo. Tal fato deveria fazer pensar muitos médicos e professores brasileiros que têm os EUA como paradigma de medicina), ela tem vários estudos sobre a incidência de mortes provocadas pelos médicos; Martin Walker, Dirty Medicine; de artigos como o de Francisco Cóppola sobre o conflito de interesses que governa o meio da profissão médica hoje (Rev Med Uruguay 2007; 23: 3-6). Outros artigos mostram diminuição da mortalidade em comunidades afetadas por greves de médicos e a matança causada pela indústria das drogas e dos exames complementares. Iatrogenia é o termo que define o mal causado pelos médicos e, infelizmente, pouco estudado e até desprezado nas universidades brasileiras.

Argumentos Contrários de Todos os Tipos ao Mais Médicos para o Brasil

Os críticos do programa dizem que o Governo Federal colocará em risco a saúde e a vida dos brasileiros, porque não controlará a qualidade da formação dos médicos que vierem para o Brasil. Dizem também que o programa é ilegal e que o problema no Brasil não é a falta de médicos, mas a falta de estrutura para atendimento. Segundo os críticos, se houvesse mais “estrutura”, os médicos existentes no Brasil se deslocariam para a periferia e para as regiões mais distantes de grandes centros urbanos.

Particularmente a possibilidade da vinda de médicos cubanos tem causado a ira de uma pequena e barulhenta parte da sociedade. Não somente médicos, neste caso. A direita parece ver nisso a ressuscitação da ameaça vermelha que parecia devidamente exorcizada por 30 anos de ditadura. O CFM foi a Cuba há alguns anos e fez uma matéria que ocupou de forma sensacionalista a capa do jornalzinho do Conselho. Nela se lia que Cuba não forma médicos, mas enfermeiros com conhecimento mais avançado (sic). A conclusão daquela matéria era que os brasileiros que se formavam em Cuba não deveriam poder exercer no Brasil, pela baixa qualidade do ensino na Ilha, ou qualquer coisa do gênero. Alguns militantes da direita têm tomado essas palavras e tentado radicalizar seus argumentos. Dizem que Cuba não exporta médicos, mas guerrilheiros. Esses comunistas viriam para cá fazer o que fizeram na Venezuela. Lá, não fosse pelas táticas de lavagem cerebral que os cubanos usaram contra o povo, Capriles teria vencido as eleições. Aqui, em desespero, o PT usaria a mesma técnica.

Entendo que estes últimos argumentos podem parecer tolos demais para merecer análise séria. Mas, entendo também que eles encerram de forma caricata a visão de parte importante da classe média de direita do Brasil. Não somente isso, eles são levados a sério por certas pessoas. Quando publiquei um comentário favorável à vinda de médicos formados em universidades de fora do Brasil debaixo de uma declaração de um aluno meu na internet, um seu conhecido escreveu terríveis palavras contra mim. Deu-me uns epítetos dos mais vulgares e terminou concluindo que eu era um “esquerdopata comunista safado” e que deveria ser “chutado pra fora da universidade, enjaulado e mandado para Cuba”. Esse é o clima na cabeça de alguns.

Um pouco de História

A Presidente Dilma mostra coragem ao pôr a mão em dois vespeiros; o primeiro é a corporação médica, representada (indevidamente) pelo Conselho Federal de Medicina; o segundo, a universidade brasileira que só é do povo (por serem públicas, por terem autorização para funcionarem ou por receberem incentivos vários) na hora de receber recursos governamentais, mas que alija o povo de seus claustros. Todavia, por mais coragem que tenha, o programa não é algo que saiu somente da cabeça do Governo Federal. Há anos os prefeitos do País têm pressionado para que se encontre uma solução para a falta de médicos.

A presente situação começou com a criação do SUS pela Constituição de 1988. É preciso que se saiba a história do Sistema. Ele representa o que de melhor se fez no País, mesmo que ferido e sangrado pela terrível ditadura do capital e dos militares. Dos anos 1960 até 1986 foram realizadas reuniões e conferências de saúde para se discutir a criação e a forma de um sistema nacional de saúde. A VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) influenciou os rumos da Constituinte e conseguiu plasmar na Carta os princípios hoje universais de acesso integral à saúde e gratuidade. Isso significa que o SUS não foi o projeto de um partido político sozinho e nem de um grupo deles. O SUS é o ideal sonhado e construído por várias cabeças da chamada sociedade civil organizada. É uma conquista do povo, diante dos interesses capitalistas que dominaram a constituinte. O SUS não é administrado diretamente pelo executivo, mas através dos conselhos de saúde que são formados por 50% usuários, 25% trabalhadores, 12,5% fornecedores e 12,5% governo (ou seja, os governos têm somente 1/8 dos votos nos conselhos). As políticas e as diretrizes do Sistema são determinadas pelas conferências de saúde.

Não obstante essa conquista, o SUS não existia de fato. Vários caminhos foram tentados com escasso êxito, até que algumas prefeituras do Nordeste, governadas por prefeitos de esquerda, decidiram importar o modelo cubano de médico da família. Paralelamente a isso, havia a experiência da colega Zilda Arns, com a pastoral da criança. Sem entrar em detalhes, o Governo Federal de então, segunda metade dos anos 90 (um governo de direita, diga-se), resolveu investir no médico de família e criou o Programa Saúde da Família (PSF), com um modelo nacionalizado e adaptado à realidade brasileira. Como não havia a possibilidade de se fazer como em Cuba, onde um médico de família e um enfermeiro têm sob seus cuidados de 200 a 500 pessoas, usou-se a ideia da pastoral da criança para a construção do PSF. No modelo brasileiro, o saúde da família é feito por uma equipe que, além de enfermeiro e médico, conta com 1 ou 2 técnicos de enfermagem e cerca de 5 agentes comunitários de saúde (ACS). Esses ACS são descendentes dos voluntários da Dra. Arns. Cada equipe no País atende de 2500 a 4000 pessoas, com várias exceções para mais e algumas poucas para menos.

Com a determinação da XII CNS de que a Atenção Primária de Saúde (APS) fosse a coluna vertebral do SUS, consolidou-se a expansão constante do Programa (APS é, em grandes traços, o atendimento realizado mais próximo da residência ou do local de trabalho das pessoas, a um custo tolerável pela sociedade, e a porta de entrada preferencial das pessoas no sistema). O Sistema é único, mas é descentralizado. Cada esfera de poder tem certas funções. Ao Governo Federal cabe o desenho de programas, fiscalização e incentivos financeiros e são as prefeituras, mormente, que prestam o serviço “na rua”. Para receber a verba do Governo Federal, um dos requisitos é ter as equipes completas. E aí começam os problemas.

A Realidade do “Mercado de Trabalho”

Como médico, hoje, sei que posso trabalhar em praticamente qualquer município do Brasil. Não há desemprego para médico (o que é ótimo, oxalá fosse assim para todos). Mesmo as grandes capitais sofrem com a falta de médicos. Mas na prática o problema é ainda mais grave, se levarmos em consideração a complexidade da APS. Um dos fatores pressupostos da atenção primária é a continuidade do trabalho no tempo. Estar na comunidade e “viver” a comunidade. Fazer-se comunidade (“como um”), é uma das funções do médico de família. Mas, no Brasil, quando há médicos, a rotatividade é muito alta. Poucos esquentam a cadeira. Veem-se muitos recém-formados “dando um tempo” nos centros de saúde, enquanto estudam para entrar em um programa de especialidades. Afinal, qual profissão oferece salários entre 8 e 20 mil reais a alguém que acabou de tirar as fraldas? Do outro lado, veem-se médicos “cumprindo tabela” para a aposentadoria. Faltam médicos em geral e faltam médicos que saibam APS. As faculdades daqui privilegiam o pior tipo de medicina que existe. Aquela baseada na indústria das drogas e dos exames. Pouco se estuda e pratica sobre relacionamento médico-paciente. Aliás, medicina se resume nisso: relacionamento médico-paciente. Nada mais.

A visão pervertida de grande parte das faculdades brasileiras é que medicina de família é uma coisa menor, menos complexa. “Qualquer um faz”. Entretanto, não é assim. Trabalhar com um computador, como um ressonador ou um tomógrafo, pode parecer complexo. Mas, é simples. Depois que se aprende a técnica, é simples. Quando se está em um hospital, o trabalho é dividido. Há outros médicos, há laboratórios, há máquinas, há até helicópteros. Quando estamos em uma comunidade periférica a Arte cresce e a técnica diminui. É o médico de frente para a complexidade irrepetível da vida. Cada pessoa é uma pessoa, casa dia, um dia. Nada se repete. Esta realidade da APS é complexa demais. Como regra, os médicos formados no Brasil pedem “estrutura” para enfrentar essa realidade. O que estão pedindo é uma apostila que lhes diga qual botão apertar para entender o que veem mas não compreendem. A vida.

A Tal “Estrutura”

Há falta de estrutura? Eis uma pergunta que me tem sido feita insistentemente. A resposta é: em geral, não! Não há falta de estrutura. A realidade do SUS não é a que os meios de comunicação mostram de filas e gente meio morta se arrastando qual zumbis. Essas imagens, por fortes que sejam e por mais que aconteçam aqui e acolá, em certos municípios até frequentemente, têm o propósito de afastar a classe média do Sistema e fazê-la escrava dos planos e seguradoras privados e de confirmar para os ricos que consultas de 600, de 1000 ou 2000 reais são justificáveis (ou para o “pobre” que uma de 40 vale a pena). Pessoalmente, nunca fui “deixado na mão” pelo SUS. Recentemente, em uma urgência familiar, fomos parar no hospital da Unimed de Belo Horizonte. A mocinha que fazia triagem nos disse: “se quiserem, podem até esperar, mas o mínimo é cinco horas”. (Curioso é que ninguém protestava e a Rede Globo e a Rádio Itatiaia não estavam lá noticiando o apocalipse). Como o caso era mesmo urgente, fomos para um hospital do SUS de Betim, quase numa favela, onde fomos muito bem atendidos.

Por outro lado, esperar não deveria ser um espanto, quando não se fala de situações de emergência. No começo do ano estive atendendo em Gibraltar, que pertence ao Reino Unido, e tive que levar um paciente ao hospital (com bastante “estrutura”). Na parede, um papel pregado com durex: “Todos serão atendidos, os pacientes em situação grave, antes. Favor esperar”. Perguntei à enfermeira e ela me disse que o tempo de espera médio era de 8 horas para casos que não fossem de risco de vida. Sem gritos, sem Globo, sem Itatiaia. Um amigo médico, sueco e morando na Suécia, precisava de exames caros de imagens. O tempo de espera, segundo ele, era de 8 meses a 1 ano. Esperas para uma consulta de APS são geralmente menores no SUS do que nos convênios. As filas para especialistas no Sistema são, em grande parte, de responsabilidade dos mal preparados médicos de família que atam no Brasil. Muitos deles são simplesmente encaminhadores. O índice de resolução de problemas de grande parte dos médicos no Brasil é inaceitável.

Como sei por onde passam os interesses dos hospitais privados brasileiros e dos médicos que trabalham neles, meu filho nasceu em uma casa de partos financiada pelo SUS. Nunca cogitei que ele nascesse numa maternidade (açougue) privada que vende cesária, fotos, filmes e serviços de hotelaria. Quando morei em Brasília, fui operado em um hospital do SUS. Não estou dizendo que o SUS seja um sistema pronto, perfeito. Minha única intenção é dizer que o Sistema é bom ou ruim dependendo da situação e muito, do município. Mas, no geral, é bem melhor do que o sistema privado de saúde no País. Qualquer um que estiver no Brasil usa o Sistema. Mesmo sem saber ou admitir. A vigilância sanitária, por exemplo, que cuida da qualidade da lagosta dos restaurantes chiques e da potabilidade da água dos ricões e dos pobretões é um órgão do SUS.

Os problemas da APS não são, em geral, de falta de estrutura. Quando os há, e isso há aos montes, os problemas são majoritariamente de interferência política e de corrupção. Já deixei algumas prefeituras porque não admiti passar os protegidos dos prefeitos e dos vereadores na frente dos outros. Já saí porque me recusei a assinar documentos falsos para conseguir verbas federais para o município. Já mudei de centro de saúde por causa de gerente politiqueira. Já deixei a direção de um hospital porque não compactuei com médicos que roubavam o hospital; operavam desnecessariamente para ganhar dinheiro; faziam cesarianas desnecessárias e até criminosas; trocavam votos por cirurgias; houve até um que colocou no chão uma criança recém-operada e mandou a enfermeira trazer o “próximo rápido” porque ele queria ver o jogo do galo (nenhum deles é cubano, são todos bem brasileiros). A chaga é essa. A corrupção entranhada nos costumes brasileiros. Sejam políticos ou não.

Quem São os Médicos no Brasil?

A situação como está é ótima para os médicos sem consciência humana. Eles podem continuar fazendo chantagem com prefeituras. Podem continuar dando dois, três plantões ao mesmo tempo. Podem continuar assinando por duas equipes PSF (cada um exige 40 horas por semana) em municípios diferentes. Mudam quando querem e pedem o que querem.
A situação como está é ruim para os prefeitos. Eles ficam à mercê dos médicos. Sentem-se impotentes. Oferecem salários que beiram o desrespeito com a população de seus municípios. Quanto mais pobre o município, maior o salário oferecido aos “doutores”. (Somente para exemplificar, como professor de horário integral, com duas especialidades e um doutorado, orientador, revisor de revistas científicas, meu salário líquido é de menos de 5000 reais. E há alunos reclamando que, assim que se formarem serão “escravos” do SUS, ganhando 10.000 reais. O dobro do professor deles e 16 vezes mais que o salário mínimo).

Mas, a situação como está, é péssima para o povo. É a massa que está sendo feita de tola no Brasil. São os milhões de trabalhadores que fornecem a mão de obra para o País andar que deveriam se revoltar contra os privilégios. Sejam de quem forem esses privilégios. Não são somente dos políticos, não são somente dos juízes. Os médicos somos privilegiados no Brasil. Isso está errado. Isso tem que acabar. Médico é um profissional como o é o torneiro mecânico, o ator, o faxineiro ou mesmo o juiz e o delegado. Há que se cortar dos de cima para dar aos de baixo.

De onde vêm os médicos brasileiros? Quantos podem, em sua linha genealógica, ascender a um quilombo, uma senzala ou uma tribo indígena? Este é um País que nunca viveu uma revolução social. Quem mandava há 500 anos ainda manda hoje. De chibata na mão. Os médicos brasileiros somos quase todos brancos, oriundos das classes médias e da alta burguesia. Só se unem em momentos como este, para salvar os anéis. Quase todos se formaram em uma universidade brasileira.
Os médicos brasileiros pertencem quase exclusivamente à classe dominante que sempre fez o que quis do Brasil. Infelizmente, poucos colegas se sacrificam por um mundo melhor. Mas são esses poucos os que me enchem de orgulho e em quem procuro me inspirar. Espero que meus alunos os descubram e sigam seus passos e subam em seus ombros para ver um futuro melhor para todos.

A Universidade Brasileira

De onde vem a universidade brasileira? Da necessidade da “elite” de manter seus privilégios. Até pouco tempo, historicamente falando, a “elite” branca mandava seus filhotes para a Europa. O Brasil foi ter universidade muito tarde. Os países hispânicos as têm há mais de 400 anos. Daniel Caribé escreveu um artigo em 2007, “Universidade Nova: quem ganha com este projeto?”, com o qual acerta no alvo. Ele compara a história da universidade brasileira com a da Universidade de Córdoba, na Argentina (completou 400 anos neste ano). Lá, em 1918, os estudantes tomaram a universidade e a ocuparam (a Argentina acabara com o analfabetismo no final do século anterior). Lançaram uma pérola, dirigida aos “Homens livres da América do Sul”, infelizmente pouco conhecida no Brasil. O Manifiesto Liminar e o movimento exigiam a estatização completa da universidade, sua gratuidade, o fim das vagas limitadas (isso mesmo!), livre acesso ao povo, liberdade para aprender e liberdade para ensinar. Esse manifesto influenciou o maio de 68 na França, curiosamente mais familiar à Pindorama. Ou seja, exigiram (e conseguiram) que a universidade voltasse a ter o espírito livre dos clérigos vagantes e da goliardia italiana, de 800 anos antes (ainda existente na Itália!). A Argentina investiu na “universidade de massas”. Quem quisesse exclusividade e perfumaria, poderia procurar as privadas. Deu certo. É o País mais erudito das Américas (em que pese a falta de duas gerações de universitários assassinadas pelo capital e pelos militares).

Destarte, a universidade brasileira nasceu pobre para ricos e assim ficou. Uma das universidades mais fechadas para o exterior que conheço. É raro ver professores estrangeiros. Alunos são vistos, mas poucos também. Isso é no mínimo estranho. As universidades que conheço pelo mundo se orgulham de serem abertas, de terem professores de todos os lados, de serem uma rosa dos ventos, um crisol. Por outro lado, no Brasil há os que se assentam em “rankings”. “-Ah, porque esta ou aquela está entre as x melhores”. Mau gosto, cafonice e falta de erudição. Papagaios de estadunidenses! Academia não se mede em “ranking”. Casa de Altos Estudos não é carro de corrida. O que faz uma academia é o sedimento de docentes, discentes e corpo administrativo. Enfim, universidade é tempo.
E esse é o problema. O Brasil não sobeja em boas universidades. Se houvesse, até se poderia escutar o queixume das entidades médicas. Mas não há. (Claro, bons profissionais e bons estudantes existem e são vários. Bons médicos se formam até em más faculdades. Não é uma faculdade que limitaria quem tem vocação. Tenho vários excelentes colegas em quem confio minha saúde. A análise que faço é institucional e não pessoal. Generalizar é sempre um problema, mas não há outro caminho, pois estamos a falar de um “gênero”).

O estudante de medicina do Brasil tipicamente acha que ganhará dinheiro ao se formar. A lógica aqui é pervertida. Quanto mais elitista uma faculdade, mais os estudantes têm esse desejo. E, no Brasil, as universidades “públicas” são mais elitistas. Assim, é comum ver as faculdades privadas dando mais atenção ao SUS do que as públicas. Uma das privadas onde dou aulas, expõe os alunos ao Sistema desde o segundo mês de aulas, até a formatura. O resultado é que esses alunos estão mais inteirados e preparados para o PSF do que os alunos que frequentaram as públicas.
Seja como for, há uma desigualdade considerável entre a realidade de vida do médico e a de seus pacientes pobres. Um dos problemas mais recorrentes quando fui gestor do SUS era a falta de diálogo entre médicos e pacientes. Eles até se falavam, mas não entendiam a língua um do outro. Falavam português, mas os significados eram muito diversos.

Não bastasse o “vestibular”, construído na medida da exclusão dos pobres e da perpetuação dos ricos, o Brasil embarcou noutra canoa furada. E, desta vez, a responsabilidade é de um ex-ministro teoricamente de esquerda. O tal ENEM é um crime de lesa-humanidade. Ele se baseia da Teoria da Resposta ao Item, TRI. Essa TRI é filha da psicometria, parente da eugenia e dos “nazismos”. Parte de falácias conceituais, como a que considera ser possível objetivar a aprendizagem e medir a psiquê. O ENEM é impossível de ser fiscalizado. Você tem que aceitar o resultado e acabou. Um concurso assim, deveria ser considerado, no mínimo, ilegal. É um longo assunto.

Em suma, niversidade pública tem que ser de massas. Nenhum exame prévio deveria poder excluir uma pessoa de frequentar uma escola pública.

A Realidade dos “Estrangeiros”

Por motivos vários, a gritaria é maior contra os cubanos, como já foi dito, e menor contra espanhóis e portugueses. Aqui respondo a meus alunos e às pessoas que, de boa fé, aderem ao discurso da UDN. Começo pelo seguinte: li o Diário Oficial e não vi referências explícitas a nenhuma nacionalidade estrangeira. Mas, admitamos que o plano seja mesmo atrair ibéricos e cubanos.
Primeiro, os europeus. O CFM é patrocinador de um programa de doutoramento em bioética, em convênio com a Universidade do Porto. Por coincidência, sou coorientador de um aluno – brasileiro – desse programa. O próprio Conselho tem procurado uma maneira de validar automaticamente os títulos da Universidade do Porto. Assim, pegaria mal criticar os portugueses, não é mesmo? Como o sistema universitário europeu hoje é unificado em seus princípios, os espanhóis entram no mesmo saco. Além disso, há um complexo de vira-latas que não deixa os brasileiros criticarem muito a Europa. Afinal, se vem de lá, deve ser bom (e, neste caso, é mesmo). O Governo Federal está em tratativas com seu par Português para assinar um convênio de reconhecimento de títulos. Não tenho visto protestos contra isso. Será pelo doutorado do Porto?

E Cuba? Cuba é um caso sui generis. Por ter a história que tem, desperta paixões de um lado e de outro. Mas aqui interessam os fatos médicos e universitários e para que a conversa continue boa, há que se deixar as paixões de lado. Cuba é uma Ilha muito pobre no meio do Caribe, assolada por furacões e cercada por tubarões. Faz açúcar, charuto e promove o turismo. Pode uma “coisa” dessas produzir um bom médico? Um médico que serviria para atuar na quinta potência econômica mundial? Teriam os médicos cubanos capacidade de atender bem a população brasileira? Por mais difícil que seja, acredite. A resposta é: sim. Nem por um momento cairei na armadilha de discutir Fidel Castro. Se interessa uma revolução aqui, é a revolução social. Cuba, essa paupérrima ilhota decidiu investir em duas coisas. Educação e saúde. Nessa ordem. Um dos mais pobres países do mundo acabou com o analfabetismo em dois anos. Perdeu a maioria de seus médicos (com perfil social semelhante ao dos brasileiros) para os Estados Unidos depois da revolução e decidiu formar os melhores médicos. O resultado é impressionante. Se você deixar de lado o preconceito, verá um Haiti que virou uma potência da saúde pública, da educação e dos esportes.

Os médicos e os professores universitários formados em Cuba são respeitados pelas academias mundo afora. Também por governos não amigos. A prova? Foi-me dito na Embaixada da Espanha (uma monarquia de direita com governo de direita) que os títulos de medicina da Argentina e de Cuba eram aceitos no Reino de forma muito mais expedita que os de outros países. Disseram-me, também, que os títulos brasileiros tinham muitas dificuldades. Perguntei o motivo e me disseram: “o Brasil não aceita ninguém, ninguém aceita o Brasil”. Isso eu vivi. Outro fato: há dois anos recebi em casa dois estudantes que cursam medicina em Cuba. Um brasileiro e outra estadunidense. Consegui que frequentassem um Centro de Saúde. A médica do PSF ficou muito impressionada com o desempenho dos dois. Sobretudo a seriedade, a ética e a vontade de estudar. Perguntei numa noite de conversas à estadunidense se ela poderia voltar e exercer nos Estados Unidos. Ela me disse que sem nenhum problema. Que ela, como qualquer estudante dos EUA se submetia anualmente a um exame e que, superando esse exame, teria o registro para o exercício assegurado. Ela me disse ainda, que havia algumas dezenas de estudantes dos EUA em Cuba. Todos estudavam de graça, o que seria impossível no país dela. Perguntei o conceito do qual gozavam os médicos formados em Cuba lá no Norte. Ela me disse, sem pensar: “são considerados ótimos”.

Conheço três médicos que se formaram em Cuba. Eles não precisaram fazer o que hoje se chama Revalida, pois eles entraram na Convenção Regional citada no prólogo. Os três são profissionais de ouro. Sempre se destacam como os melhores em seus trabalhos. Um deles, depois de fazer pediatria, cardiologia pediátrica e mestrado em pedagogia, trabalhou como médico do PSF por anos. Depois se juntou aos Médicos Sem Fronteiras. Curioso. Ele já atuou em mais de 30 países e nunca fez “revalida” em nenhum deles. Mais curioso ainda: atuando em 4 continentes, nas condições mais diversas, nunca se queixou de falta de “estrutura”. Há médicos assim. Especialistas em gente. Sabem de muita coisa, mas sobretudo aprenderam relação médico-paciente, relação humana, amor pelo semelhante. Se alguém está sofrendo, ele vai lá e atende. Depois pensa em si próprio.

A Formação em Cuba

Como é a formação em Cuba? Séria. Rigorosa. Diferente da formação clássica europeia que existe na América, por exemplo, na Argentina. Cuba, talvez por ser muito pobre, não pode ter uma universidade de massa. Mas todos têm a mesma chance de entrar na faculdade de medicina, seja filho de médico, seja filho de lixeiro. O número de vagas varia de ano pra ano, de acordo com as necessidades projetadas para o futuro.

O estudante de medicina em Cuba respira universidade 24 horas por dia. Tipicamente o estudante mora na academia. Não se preocupa com outras questões paralelas enquanto estuda. A universidade fornece alojamento, roupas, comida e até os livros. Isso mesmo, um país pobre como Cuba forma seus médicos com livros e não com apostilas ou fotocópias do caderno da colega de letra bonita que copia tudo o que o professor diz. Apesar de haver avaliação escrita, a maioria das provas é oral. As provas finais orais são com banca examinadora (como em grande parte da Europa, como na Argentina). O aluno se senta, sorteia algumas perguntas e é sabatinado pelos professores. Mas há provas praticamente todos os dias. Os alunos nunca sabem quando serão examinados durante as aulas. Têm que saber tudo o tempo todo. A formação tem, além das matérias existentes no Brasil, outras que ajudam a forjar um médico humano, como filosofia, psicologia, sociologia (como acontece na Argentina). Se algum aluno for pego trapaceando, colando, é expulso e proibido de fazer qualquer curso superior na Ilha. O curso dura seis anos e, quando formado, o médico tem que ir trabalhar aonde o Estado determinar.

Há também que se dizer o que não se vê em Cuba. Não se veem estudantes publicando frases na internet do tipo “graças a deus hoje não tinha paciente no posto”. Não se veem professores ensinando seus alunos a chamarem pacientes do SUS de “jacaré”. Não se veem universidades chamando professores às falas e até os demitindo por terem reprovado alunos. Não se veem médicos assassinando pacientes para liberar leitos e faturar mais na UTI. Não se veem médicos falsificando as próprias digitais para fraudarem o trabalho. Não se veem estudantes fazendo abaixo-assinado contra professores “difíceis”. Não se veem pais de alunos indo à universidade reclamando porque o filhinho ficou com nota baixa. Não se veem professores esfaqueados por alunos que foram mal avaliados. Não se veem estudantes dando “plantões piratas” sem supervisão em hospitais e médicos que deixam seus carimbos com estudantes enquanto vão dormir. Não se veem estudantes fazendo “esquema” para que parte deles escape dos estágios obrigatórios. Não se veem médicos com duas agendas; uma para “convênios” e outra para “particulares”. Dessas “estruturas” Brasil padece.

Não satisfeitos com suas conquistas internas, Cuba criou uma tradição honrosa de mandar médicos a locais de catástrofe mundo afora. No Haiti quem primeiro chegou após o terremoto e lá permaneceu não foram os estadunidenses ou brasileiros, muito mais ricos e poderosos. Foram os cubanos.

Preparados para atuarem em qualquer condição, não tiveram dificuldades para se adaptar. Hoje, além de tabaco e de açúcar, a Ilha oferece seus médicos ao mundo. Tocantins provou noventa deles. Consta que experiência foi excelente, até o CFM conseguir liminar na justiça, expulsando-os, sob a acusação de que eles estavam tirando empregos de brasileiros. Curioso, nunca soube que o CFM tenha mandado médicos “brasileiros” para lá, ou que qualquer diretor do Conselho tenha ido ocupar essas vagas. Da última vez que soube, os lugares atendidos pelos cubanos ainda estavam com as vagas abertas.

Dois Anos de Estágio Obrigatório e “Revalida”

É certo o recém-formado ter que trabalhar aonde o Estado mandar? Claro que sim! Medicina não é administração de empresas e nem de herança. Medicina é sacerdócio, é doação. Quem faz medicina para se locupletar ou para ter descanso, faz o curso errado. Não importa se você estuda em universidade pública ou privada, se você tem ProUni, Fies ou se paga 60, 70 mil reais por ano. Ensino e conhecimento não são propriedades. Você não “compra” seu curso ou seu diploma de medicina porque paga para frequentar a universidade. Quando escolhe aprender a Arte, você entra em uma tradição milenar, iniciática. Tradição de serviço. Se rincões amedrontam você, se pobre dá nojo, medicina não é para você. Você não acaba sua formação depois de 6 anos. Depois desse período você deveria estar pronto para começar a se formar. O que forma você é a relação com o paciente, com o mundo, com a dor, com o sofrimento. Quanto mais necessitado o paciente, mais ele forma você.

Fico muito feliz com essa ideia. Anos atrás escrevemos um projeto parecido, usando a obrigação constitucional de serviços militares ou sociais. Apresentamos o projeto ao Exército e ao Ministério da Saúde. Acharam interessante, mas ninguém queria mexer com médicos e estudantes de medicina. Parabéns, Presidente, pela coragem.

Por último, o “Revalida”. A ideia do Revalida não é necessariamente errada. Mas, está no lugar errado. O Brasil não pode se dar a esse luxo. Muitos países do mundo não têm processo de revalidação. Outros têm. Mas, no geral, os países se abrem para médicos já formados. O motivo é óbvio. Formar um médico ficou caríssimo (não tem que ser necessariamente assim). Aceitar um pronto é muito mais barato. E, num país sem tradição universitária, nem há que se falar em Revalida. Penso que assegurar-se que a universidade de origem seja reconhecida pela ONU, que esteja no Avicenna, já está de bom tamanho.

Somente a título de exemplo, no Reino Unido 40% dos médicos (o sistema de saúde de lá é considerado o melhor do mundo) são formados fora. Facilita-se a entrada de novos médicos sempre que o sistema precise.

Para quem quer mais números, gosta de estatística descritiva e quer pensar um pouco, ei-los:

PIB em bilhões de US$ (2008) Gasto per capita com saúde em US$ (2008) Médicos /1000 habitantes (2005) Mortalidade infantil (/1000) Casos de dengue registrados (2007)
Brasil 2648,9 715 1,64 21,2 (2005) 559,954
Cuba 60,81 584 6,27 5,3 (2007) 28
EUA 14219,3 7760,5 2,25 6,9 (2005) 488

Fontes: OPS, OMS, index mundi, Trading Economics

Post Scriptum: O CFM nunca me perguntou o que eu pensava sobre este assunto, mas, insistentemente diz falar em nome de todos os médicos e tem mandado e-mails pedindo para que eu me junte “à luta”. A lei que criou o CFM diz que ele é uma autarquia que fiscaliza o exercício ético da profissão. Ou seja, deveria estar fiscalizando e punindo os membros inscritos que cometem barbaridades contra pacientes. CFM não tem procuração para falar em nome da categoria. Esse papel, em todo caso, caberia ao sindicato dos médicos. O CFM quer sempre um mercadão com muita demanda. Hoje convoca todos os médicos e estudantes do Brasil. Há pouco tempo não queria aceitar os formados em faculdades privadas, dizendo que eram elas de baixíssima qualidade e que a saúde da população estava em risco. Como fica? São companheiros ou um ameaça os formandos em escolas privadas para o Conselho?

Em todo caso, eu já me juntei à luta, mas foi à luta pela vida, por um mundo melhor, baseado na semelhança. Semelhante cura semelhante. Não sou contra o espírito de corpo. Ele é importante em vários momentos, mas os princípios fundamentais vêm antes. Continuarei lutando, ao lado do povo. E, para o povo, o melhor neste momento é que todos apoiemos o Programa Mais Médicos para o Brasil.

*Giovano Iannotti é professor de Medicina