Reli há dias o último livro de Eric Hobsbawm: «Como Mudar o Mundo – Marx e o Marxismo,1840-2011».** Publicado pouco antes do seu falecimento, é uma coletânea de ensaios, conferências e artigos escritos entre 1956 e 2009.

Distancio-me como comunista de parte da obra do historiador inglês. A discordância de muitas das suas opiniões, nomeadamente a reflexão sobre o desaparecimento da União Soviética e a agressão imperialista ao povo afegão, não me impede de aconselhar a leitura de «Como Mudar o Mundo». O seu mérito maior é o balanço que apresenta do legado de Karl Marx e da sua profunda repercussão nos seculos XIX e XX e neste início do XXI. Tal como assinala no prefácio, «o marxismo foi durante os últimos 130 anos, um tema importante no contexto intelectual do mundo moderno e, através da mobilização de forças sociais, uma presença crucial, e em alguns períodos decisiva, na história do seculo XX».

A devastadora crise de civilização que hoje enfrentamos demonstra que o capitalismo não tem solução para os problemas da humanidade e terá de ser erradicado. Marx é, hoje como ontem, atualíssimo: ajuda a compreender o presente e abre as alamedas do futuro.

DO ENTUSIASMO À DESERÇÃO

Lenin afirmou que sem teoria revolução alguma pode vencer e ter longa vida. Enunciou uma evidência confirmada pela História.

Daí a importância dos intelectuais revolucionários como produtores e divulgadores de ideologia.
A obra de Marx, a principiar pelo Manifesto Comunista, não teria alcançado projeção mundial, cumprindo um papel insubstituível como guia para a ação revolucionária, se sucessivas gerações de intelectuais não a houvessem divulgado, transmitindo às massas uma nova compreensão da História, da economia, da política.

Mas, ao comentá-la e interpretá-la, muitos autores também a desfiguraram.

O livro de Hobsbawm contém uma informação densa e valiosa sobre a lenta divulgação de Marx ao longo da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do seculo XX.

Neste desambicioso artigo apenas chamarei a atenção para alguns aspetos da difusão do marxismo antes e depois da segunda guerra mundial e da influência que as posições assumidas por autores que comentaram e interpretaram Marx, deformando-lhe o pensamento, tiveram no rumo de partidos operários tradicionais e de grandes lutas sociais contemporâneas.

Nos anos 20 e 30 do seculo passado, a ascensão do fascismo na Itália e na Alemanha provocou um interesse crescente dos intelectuais pelo marxismo. Escritores como HG Wells, Anatole France, Bernard Shaw, André Malraux, Aragon, entre outros, assumiram a defesa da União Soviética e, na Europa Ocidental e nos EUA, os debates sobre a obra de Marx ganharam atualidade. Três prémios Nobel de Literatura, Aragon, Roger Martin du Gard e André Gide aderiram ao PCF. A ameaça fascista condicionava o futuro da Humanidade. Após a II Guerra Mundial, o interesse pelo marxismo aumentou. O papel decisivo da URSS na derrota do Reich nazi contribuiu muito para a adesão maciça de milhares de intelectuais aos partidos comunistas. Filósofos como Bertrand Russell e Jean Paul Sartre assumiram frontalmente a solidariedade com o povo soviético e os movimentos em defesa da Paz. Nas universidades, professores que não eram marxistas aderiram ao partido comunista.

A partir dos anos 50, houve uma autêntica enxurrada de livros e debates sobre o marxismo. Mas, como sublinha Hobsbawm, «a grande maioria dos intelectuais marxistas nesse período era constituída de marxistas recentes para os quais o próprio marxismo era coisa tão nova quanto, digamos, o jazz, o cinema e a literatura policial» tinham sido para as gerações anteriores.

O marxismo dos europeus era, porém, até à morte de Stalin, com poucas exceções, o divulgado pelas publicações da Academia das Ciências da URSS.

As interpretações alternativas da teoria marxista somente surgiram após as polémicas desencadeadas pelo XX Congresso do PCUS.

Os textos dos filósofos da Escola de Frankfurt, de Adorno, Horkheimer e Marcuse, porta-vozes do chamado «marxismo ocidental», são na época tema de apaixonados debates nos campus universitários, coincidindo com as campanhas dos grandes media contra Stalin. A palavra stalinismo, criada pela burguesia, entra no léxico politico.

Para muitos intelectuais, a URSS, na qual durante décadas viam a pátria do socialismo, o país que construíra uma sociedade símbolo do progresso e do humanismo, tornou-se, no auge de campanhas anticomunistas, a imagem da tirania e da desumanização da vida.

Os livros de Gramsci, até então pouco conhecidos fora da Itália, conhecem difusão mundial, extravasando dos meios académicos. Mas a leitura da “mensagem” da obra do autor dos «Cadernos do Carcere» difere muito, mesmo no âmbito dos Partidos Comunistas do Ocidente.

A própria teoria da Hegemonia – a dominação da cultura de uma classe sobre o conjunto da sociedade – foi submetida a múltiplas interpretações, algumas incompatíveis. Em França, na Itália, em Espanha, gramscianos entusiastas utilizaram-na para desvalorizar a luta de classes. Desvirtuado, Gramsci, um marxista original – inclusive um «leninista» na polémica opinião de Hobsbawm – foi bandeira do eurocomunismo. No Brasil e em Cuba destacados comunistas também o invocaram, distorcendo-lhe o pensamento.

Paradoxalmente, as campanhas contra a URSS e o «socialismo real» não afetaram a difusão do marxismo.
O anti- sovietismo, sobretudo apos os acontecimentos da Checoslováquia em l968, marcou a opção revisionista de influentes partidos comunistas do Ocidente, mas não impediu a expansão do marxismo em escala mundial.

A ruptura entre Moscovo e Pequim, a Revolução Cubana, a opção pelo socialismo da maioria dos movimentos de libertação africanos, a ampla difusão das teses de Frantz Fanon, a disseminação do Eurocomunismo criaram uma atmosfera de confusão ideológica.

Os estruturalistas, nomeadamente Althusser e Poulantzas, fizeram escola, semeando discípulos em dezenas de países. O primeiro foi, aliás, membro do Comité Central do Partido Francês.
Textos de Che Guevara também foram utilizados, com frequência e má-fé, por intelectuais que, deturpando-lhe o pensamento, assumindo-se como marxistas, utilizaram o eurocomunismo como alavanca de combate à União Soviética.

Dirigentes e académicos dos partidos comunistas da França e da Itália que aderiram desde o início à perestroika não hesitaram em glorificar Gorbatchov e acompanharam com entusiasmo o processo de destruição da União Soviética. Das críticas a Stalin passaram rapidamente à crítica de Lenin.
O revisionismo de alguns partidos operários evoluiu em poucos anos para posições ostensivamente anticomunistas.

Um secretário-geral do PCF, Robert Hue, saudou como acontecimento positivo a desagregação da URSS, afirmando que tudo no país da Revolução de Outubro tinha sido negativo.

A VAGA REVISIONISTA

A ofensiva revisionista precedeu, aliás, a perestroika.

As obras dos ideólogos da Escola de Frankfurt foram amplamente publicadas nos EUA e saudadas pelas «novas esquerdas» americanas como contribuição revolucionaria ao marxismo. Nas grandes universidades, os epígonos de Marcuse condenaram em bloco os partidos comunistas existentes, revisionistas ou não, qualificando-os de traidores da causa socialista.

Os livros de Marx voltaram a ser amplamente editados e debatidos. “O Capital”, entretanto, foi tratado como se fosse quase uma obra de epistemologia. Segundo Hobsbawm, “ a pesquisa e a análise do mundo real esconderam-se atrás do exame generalizado das suas estruturas e mecanismos, ou até atrás da investigação ainda mais genérica de como ele devia ser apreendido. Os teóricos eram tentados a passar de um exame dos problemas e perspetivas específicos de sociedades reais para um debate sobre a «articulação» dos «modos de produção» em geral”.

Muitos intelectuais, sobretudo os estruturalistas, esforçaram-se, na exegese da obra de Karl Marx, por opor os escritos do jovem Marx aos do Marx da maturidade. Dezenas de livros foram editados tendo por tema supostas e insanáveis contradições entre «Os Manuscritos de 1844» e «O Capital». Forjar imaginárias contradições entre Marx e Engels e opor ambos a Lenin foi outra modalidade de anticomunismo cultivada por marxólogos anti-soviéticos.

Esse cosmopolitismo marxizante somente deixou de fascinar os académicos das grandes universidades do Ocidente quando a URSS se desagregou e um capitalismo selvagem se implantou na Rússia, durante o consulado de Ieltsin.

O desaparecimento da União Soviética – uma tragédia para a Humanidade, festejada no Ocidente como vitória histórica da democracia – atuou como terramoto em partidos comunistas que já tinham optado por um reformismo transparente. Muitos dirigentes apressaram-se a renegar o marxismo. Entre os intelectuais a debandada foi imediata; alguns invocaram a revolução técnico-científica para romper com o passado de comunistas.

O marxismo foi varrido das universidades e das livrarias.

Nos EUA, Francis Fukuyama,um funcionário do Departamento de Estado, anunciou com alegria o «Fim da História», a morte do comunismo e a vitória do neoliberalismo como a ideologia para a eternidade.

PRESENÇA DE MARX

A profecia foi, porém, rapidamente desmentida.

Marx volta hoje a ser editado, lido e o seu pensamento e obra debatidos. Na Europa, na América, na Asia, na Africa, Congressos e Seminários Internacionais são promovidos para o recordar e estudar.

Em Paris Jean Salem promove na Sorbonne desde 2005 um Seminário semanal sobre «Marxismo no seculo XXI» em que participam em média 200 pessoas e que é acompanhado na Internet por dezenas de milhares. O «Manifesto Comunista» é reeditado em dezenas de países, tal como as obras de Marx e Engels.

Como as causas que estão na origem das grandes revoluções não desapareceram e a crise do capitalismo se tornou estrutural, o renascer do interesse pelo marxismo é hoje uma realidade, não obstante a perda de influência dos partidos comunistas.

A cada ano aumenta o número de Congressos e Seminários Internacionais dedicados a Marx e à sua obra. Essas iniciativas mobilizam porém intelectuais que se situam em quadrantes ideológicos muito diferentes. Era inevitável. Emmanuel Wallerstein criou a expressão «os mil marxismos» em comentário a essa heterogeneidade.

Muitos marxianos interessam-se por Marx numa perspetiva exclusivamente académica. Ignoram a praxis.
Outros, embora afirmando a necessidade da luta contra o capitalismo e o imperialismo, concentram-se apenas em questões teóricas, distanciados de qualquer tipo de militância em organizações politicas.
Não esqueci o comentário ouvido do historiador Albert Soboul quando um comunista, professor da Universidade de São Paulo, no Brasil, expressou uma grande admiração pela contribuição do filósofo Henri Lefèbvre como eminente marxista.

«É verdade – disse – ele escreveu livros importantes. Mas creio que nunca entrou numa fábrica, temo que nunca tenha falado com um operário».

Em Encontros sobre Marx participam também marxianos, sobretudo de tendência trotskista, cujos trabalhos estão mais orientados para a crítica ao «socialismo soviético» do que propriamente para a exegese do pensamento do autor de «O Capital». Recordo o livro de uma historiadora portuguesa que, na tentativa frenética de responsabilizar Álvaro Cunhal pelo desfecho negativo da Revolução de Abril, o define como um menchevique português que teria impedido a luta revolucionária da classe operária…

Atitudes como essas não ocultam uma evidência: o renascimento do interesse por Marx e o marxismo é um fenómeno social e político de âmbito mundial, inseparável da consciência de que o capitalismo está condenado a desaparecer e que a única alternativa é o socialismo.

Reler os clássicos do marxismo, sobretudo Marx, tornou-se uma exigência das grandes lutas da humanidade contemporânea. Para preparar o futuro, como lembra Jean Salem.

*Publicado no numero 3 de «El Machete, revista de teoria y politica» do Partido Comunista do México, Outubro de 2013
**Eric Hobsbawm, «How to Change the World – Marx and Marxism, 1840-2011», London 2011