No meio da cena mais reveladora do país em A lata de lixo da história (Cia das Letras, 2014), peça de Roberto Schwarz recém-publicada em segunda edição, lemos uma fala que, como tantas outras da obra, faz pensar. Diz um dos personagens envolvido no pretenso “levante popular”: “Nós vamos derrubar a Casa Verde, não tem dúvida. Mas acho que não vai ser suficiente. O que estou sentindo é uma azia complexa, geral, exigente – uma azia da alma”. O personagem refere-se à possível ofensiva contra o hospício do personagem machadiano Simão Bacamarte e, ao mesmo tempo, demonstra uma espécie muito grave de perspectiva negativista com relação ao que pode fazer o povo contra a opressão. É uma fala que expõe agressivamente um sentimento geral do Brasil à época da ditadura e que tem a ver com o tino conservador da nação, cujos movimentos transformadores, mesmo os mais retumbantes, conservam sempre algo de irresoluto. Um irresoluto que mora no estômago do país e que, na melhor das hipóteses, se converte numa “azia da alma” brasileira. Àquele tempo, essa azia era uma premonição de que o atraso venceria e que a história avançaria não apesar dele, mas por causa dele.

Por isso, a peça de Schwarz merece esta segunda edição 50 anos após o golpe militar e também uma leitura atenta, que lhe sublinhe a força de conexão entre duas conjunturas brasileiras: a daquele infeliz regime de exceção e a de hoje. Como há meio século, um país aparentemente à beira da renovação tem de engolir em seco, quando vislumbra o resistente fantasma do conservadorismo soprar-lhe perigosamente no ouvido. Escravidão, revolução sem revolução, entrega ao capital internacional, blitz dos proprietários sobre o Estado que deveria solidarizar irrestritamente com os debaixo: elementos da comédia brasileira que estão na peça e que evidenciam, como afirma Schwarz, que “De lá para cá, muita coisa mudou, mas nem tudo”. A grande mediação entre tempos brasileiros é O alienista Machado de Assis, o escritor que estrutura a mais aguda perspectiva sobre o mando à brasileira, que converte capricho e zelo pela propriedade em destino comunitário geral, sempre em desfavor dos oprimidos. O alienista de Schwarz pretende mesmo é ser desalienante. No ótimo prefácio a esta edição da obra, o estudioso de Machado nos interpela para a produtividade da leitura machadiana dos diversos momentos brasileiros: “Não era só o velho Machado que emprestava personagens e situações para falar da repressão em nosso presente. O caminho inverso também valia, sugerindo uma leitura menos convencional do mestre e, através dele, do passado brasileiro. O festival de desfaçatez armado por nossas elites logo em seguida ao golpe, com sua salada de modernização, truculência e provincianismo, ensinava a reconhecer aspectos até então recalcados da ironia machadiana”. O achado estético e crítico de Schwarz, então, está aqui em ler dialeticamente o presente brasileiro pela via machadiana e conferir a Machado, pela acurada atenção ao momento histórico, uma dolorida e incrível atualidade. O gesto resume-se em ficar com o sumo do texto machadiano, ou seja, a alegoria do debate cientificista acerca da normalidade e da loucura em contexto de paroxístico provincianismo, agregando-lhe negatividade adicional, pela interpretação do clássico aderente ao tempo do golpe e eivada de negatividade. Com isso, o crítico/dramaturgo dá uma lição ao Brasil de hoje, em que há, na crítica e nas artes, um grave déficit na capacidade intelectual e artística de avaliar a conjuntura presente e exprimi-la em chave negativa.

Chamam a atenção na construção de A lata de lixo da história alguns elementos de forma muito bem articulados para este destino de negatividade a que o texto se entrega. O dado estruturador básico é a técnica do corte, que faz girar uma máquina de mudanças, conversões e incertezas própria ao tipo brasileiro de articulação política. Na primeira rubrica do texto, esta técnica é apresentada pelo autor: “Nesta peça tudo é questão de ritmo e corte, pois ela é construída sobre transições canceladas. A passagem da chanchada à atrocidade, as conversões rapidíssimas em matéria de convicção, a brevidade com que se despacham as discurseiras, bem como a alternância de asneira e cinismo, fazem figura da história contemporânea”. Separadas por segundos de escuridão, as cenas, que não se vinculam imediatamente, apreendem a volubilidade do movimento da classe dominante brasileira diante das encruzilhadas criadas pela opressão militar. Essa relação entre a forma dramática descontínua e o conteúdo de atualidade histórica é muito bem sublinhada pelas rubricas, que são verdadeiras intervenções de crítica literária, muito mais do que meras indicações cênicas. Num entremeio de fala do personagem principal, que iria referir-se ao Brasil, lê-se, por exemplo: “ouvem-se barulhos horripilantes, e Simão em homenagem à censura e à ditadura de 1964 muda a peça para outro país”. Assim, numa espécie de técnica retrointerpretativa, a peça vai configurando, não apenas aos olhos do leitor que tem acesso às rubricas, mas também ao possível espectador, uma refinada forma de metalinguagem crítica e politicamente consistente. O metateatro tem, pois, direção política evidente. O espectador/leitor a esse respeito acha amparo interpretativo nas falas e nas figuras dos “Notáveis”, que, salvo engano, são os verdadeiros protagonistas da peça. As falas desses “Notáveis” expõem de modo cru a hipocrisia e as intenções ocultas das classes dominantes no xadrez ideológico do Brasil pós-golpe. Além disso, com tino teatral e pedagógico aguerrido, o autor confere a essas falas o poder de explicar tanto os movimentos da peça e quanto os do país a que ela busca dar figura estética e crítica. Um dos oradores “Notáveis”, lá pelas tantas, solta uma afirmação reveladora da posição desses personagens no contexto da obra, que é também figuração do conservadorismo terrífico da sociedade brasileira: “Não podemos, por ora, dispensar forma alguma de autoridade. Precisamos do que abominamos, isso é que é.”

Como se vê o leitor/espectador deve estar preparado para “levar na cara” uns violentos golpes das falas das personagens. Assim se cria um espelho com a indicação cênica do autor, que é a de dispor bonecos negros e animais pelo palco, “que serão maltratados de várias maneiras, conforme a circunstância”. As frases violentas em A lata de lixo da história vão se tornando cada vez mais intensivas e frequentes e, com isso, aos poucos, o riso bem humorado que era a tônica no início vai se tornando histeria, misturada, nas palavras de Schwarz a “medo e angústia”. Um ápice desse continuum é a cena 12, que põe em cena o “regime bacamarte” e na qual se lê mais uma violenta frase de um “Notável”: “Não sou dogmático, e tudo que aumente o rendimento da propriedade conta com minha simpatia”.

Tudo isso, entretanto, não se perde em negativismo ensimesmado ou apocalíptico. Atenta ao legado de Brecht, a peça de Roberto Schwarz aposta na possibilidade de intervenção política veloz do teatro, forma artística em que espectadores e atores se unem tensamente em um mesmo desespero pela solução do problema posto no palco. O desfecho da última cena, que dá título à obra e configura o desejo de lançar ao depósito de velharias o que Schwarz chama de “as práticas e teorias responsáveis por formas caducas de opressão” é exemplar nesse sentido. Golpeado por um “Notável” que celebra a feliz solução de compromisso entre as elites, o capital e a opressão, um boneco, daqueles que sempre estiveram em cena e que na verdade é um homem, revida e lança o agressor na dita “lata de lixo da história”. Haveria, portanto, algo disponível como desfecho progressista para aquela conjuntura? Este é também um convite à reflexão sobre a nossa experiência histórica atual: haveria hoje a quem revidar? haveria lata de lixo a que lançar opressores? haveria um espaço progressista da cultura como aquele que era o do teatro nos anos da ditadura? que tipo de humor nos reconciliaria com a desrazão opressora de nosso tempo? Em outras palavras, o irresoluto do país ainda é capaz de hoje gerar em nós uma “azia complexa”? De todo modo, é este nervo crítico exigente de A lata de lixo da história que gostaríamos de ver mais vezes na produção cultural atual, pois ele é tensionado pelas contradições brasileiras que são próprias à conjuntura histórica de nosso tempo.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.

Leia abaixo o novo prefácio de Schwarz para a peça e, à esquerda, ao alto, baixe o PDF de um trecho do livro:

A lata de lixo da história
Prefácio inédito a uma chanchada de 1968

por ROBERTO SCHWARZ

No final da década de 60, a “lata de lixo da história” era uma expressão difundida, levemente fanfarrona. Designava o depósito de velharias ao qual, com sorte, seriam jogados os políticos, as práticas e as teorias responsáveis por formas caducas de opressão. Capitalismo e stalinismo iriam embora de braço dado, no mundo e no Brasil, varridos pelo progresso da história e pelos estudantes libertários. Entretanto, como se verificou em seguida, o curso das coisas não foi o esperado, até pelo contrário. E como o sistema dos opressores se reciclou e venceu em toda linha, a expressão – tão simpática – saiu de moda. Ainda assim, se consultarmos a nossa experiência e nosso íntimo, talvez convenhamos que ela, a lata, não perdeu a razão de ser, nem deixou de falar à imaginação. Por expressar o que devia ter sido e não foi, achei que era um bom título para uma chanchada política.

A ideia de transformar O Alienista de Machado de Assis numa sátira à ditadura de 1964 estava no ar. Havia um paralelo óbvio entre o terror espalhado por Simão Bacamarte – o cientista maluco e sinistro que infelicitava a pacata Itaguahy – e o regime antipopular dos militares, com seus ministros da Fazenda que metiam medo e disciplinavam o país para o capital. Nelson Pereira dos Santos percebeu as possibilidades artísticas da comparação, da qual tirou um filme agoniado e interessante, o Azyllo Muito Louco. Em espírito parecido, houve tentativas também de adaptação para o teatro, entre as quais a minha. O que todos procurávamos era o respaldo de um clássico nacional acima de qualquer suspeita, além de remoto no tempo, que deixasse desarmada a censura e possibilitasse a crítica ao Estado policial.

O paralelo funcionava como uma via de duas mãos e tinha efeitos retroativos. Não era só o velho Machado que emprestava personagens e situações para falar da repressão em nosso presente. O caminho inverso também valia, sugerindo uma leitura menos convencional do mestre e, por meio dele, do passado brasileiro. O festival de desfaçatez armado por nossas elites logo em seguida ao golpe, com sua salada de modernização, truculência e provincianismo, ensinava a reconhecer aspectos até então recalcados da ironia machadiana. Esta aparecia a uma luz nova, muito mais ferina e política, de incrível atualidade. Noutras palavras, as revelações sociais trazidas pelo golpe de 64 desempoeiravam o maior de nossos clássicos.

Comecei a escrever A Lata de Lixo em dezembro de 1968, pouco antes da decretação do AI-5, que afundou o país em anos de terror. Estava escondido em casa de amigos, cuja biblioteca era boa, e resolvi aproveitar o tempo. Além do Alienista, tirei da estante O Príncipe de Maquiavel, e sentei para trabalhar.
A gravidade do momento era brutal, mas ainda assim a grossura dos generais arrancava riso, uma risada algo histérica, em que se misturavam o medo e a angústia. O clima era de pastelão macabro. Para exemplificar, quando o general-presidente foi à tevê para explicar a necessidade de seu horroroso e histórico AI-5, parecia não ter familiaridade com o texto à sua frente, pelo qual ia tropeçando como podia. Enquanto isso, nas grandes capitais do mundo, e também entre nós – o ano era 68 –, a irreverência e o espírito libertário estavam em alta. Por contraste, as figuras caricatas que passavam a mandar e desmandar no Brasil ficavam ainda mais deprimentes e exasperantes. Para completar a liquidação, a oposição liberal à ditadura vacilava entre a prudência apavorada e a adesão oportunista, sem abrir mão das belas palavras. Mal ou bem, procurei dar forma teatral a essa cacofonia, casando decoro e pancadaria, grã-finismo e cretinice, cálculo e primarismo etc.

Por forte que fosse, a pressão das circunstâncias não determinava as soluções artísticas diretamente. A escolha e a discussão estética estavam na ordem do dia. Entre 1964 e 1968, a resistência cultural havia respondido com agilidade ao retrocesso político, inventando espetáculos incisivos, de grande repercussão, e produzindo algumas obras-primas. Teatro, canção, cinema e artes plásticas desenvolviam atitudes e formas sob medida, inconformistas em toda linha, valorizadas pela alusão inteligente ao presente nacional, o que não excluía a atualização cosmopolita. Como o momento era coletivo, a referência mútua fazia parte do jogo. Quando partia para o trabalho seguinte, o artista encontrava pela frente um leque intensamente debatido de obras recém-saídas da oficina, de um colega ou de um rival, a retomar, a contestar, a superar. As questões de arte dividiam e agrupavam, e tinham pé no risco político, que lhes emprestava a chispa especial. Englobando tudo, em linha reta ou quebrada, prosseguia o impulso do pré-64, com sua combinação de luta contra o subdesenvolvimento e busca do socialismo.

O desacato à convenção artística dava a tônica febril ao período. Era um insulto deliberado ao gosto dos conservadores, que tinham saído às ruas em 64, marchando por “Deus, pátria e família”, e agora estavam no poder. Como as artes cênicas – o teatro, o cinema e a canção – estavam defasadas em relação à literatura, ou melhor, não tinham passado pela revolução modernista de 22, o escândalo que provocavam tinha a estridência das vanguardas em seu primeiro dia. Atrás da experimentação formal naturalmente estava o ânimo de revolucionar a sociedade ela mesma, como aliás apontavam os adversários de direita.

Dito isso, as novidades não eram só de linguagem, mas também de assunto, o que foi menos comentado. A temática do subdesenvolvimento marcava época e modificava a fundo a autocompreensão do país. O desemprego e a fome de Zé da Silva, o analfabetismo de 40% da população, o beletrismo dos doutores, a falta de vaga nas faculdades, a indústria precária, a extensão do latifúndio, a força do imperialismo americano etc. já não eram questões isoladas. As dificuldades ligavam-se por dentro, ou melhor, compunham um problema avançado, que cabia aos progressistas encarar em seu conjunto. Cheio de desdobramentos políticos e estéticos, o significado do atraso nacional se transformava, adquirindo uma relevância nova, muito mais ampla que a anterior. Com perdão da brevidade, ele, o atraso, deixava de ser visto inocentemente, como um resquício de tempos remotos, que dizia respeito só aos brasileiros. Tornava-se parte funcional – além de significativa – da ordem mundial moderna, que progredia e se reproduzia através dele, e não levava à sua superação. Em vez de se extinguir, a distância entre atrasados e adiantados se reafirmava em novos patamares, ensinando uma visão menos crédula, ou mais sarcástica e aguerrida do progresso. Segundo uma fórmula corrente na época, tratava-se do desenvolvimento do subdesenvolvimento, que tinha o futuro pela frente e não seria coisa do passado. Um desenvolvimento que, salvo viravolta de fundo, era e continuaria sendo sub. O argumento era contraintuitivo, mas fulminante.

Assim, as figuras pitorescas ou vexaminosas que alimentavam o nosso complexo de ex-colônia, tais como a miséria popular, o zé-ninguém sem eira nem beira, desprovido de quaisquer garantias civis, o político populista malandro, a dominação pessoal direta, o mau gosto calamitoso das classes dominantes, o general-ditador de óculos escuros etc., trocavam de contexto para ganhar novo alcance. Saltavam fora de seu confinamento provinciano e se inseriam no presente problemático do mundo, de cujos desequilíbrios internacionais e de classe passavam a ser indícios polêmicos, esteticamente valiosos. Muito dialeticamente, as matérias do atraso terceiro-mundista, chavões inclusive, facultavam uma transfiguração de ponta, na qual se reconhecia a atualidade em sentido pleno, planetário, gerando um tipo particular de vanguardismo. De diferentes maneiras, com margem para antagonismos inconciliáveis, a arte de Glauber Rocha, Augusto Boal, Zé Celso, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Joaquim Pedro de Andrade e outros – sem esquecer as antecipações de Oswald de Andrade – se alimentou dessa redefinição vertiginosa, que fez a ponte entre a nossa realidade segregada, ou exótica, e o movimento geral da sociedade contemporânea, num lance forte de desalienação. A seu modo e com alguma supervisão de Brecht, A Lata de Lixo da História ligava-se a esse quadro.

De lá para cá, muita coisa mudou, mas nem tudo.