A lógica elementar do jornalismo é o respeito aos fatos, à verdade e, sobretudo, à informação correta. Nada disso existe na matéria criminosa produzida pela revista Veja com o intuito declarado de prejudicar a reeleição da presidenta Dilma Roussef. Ela é de uma desfaçatez que faz vergonha até ao mais desavergonhado jornalista. Isso ocorre porque a essência deste tipo de jornalismo é a falta de caráter, a ausência de valores básicos que deveriam ser preservados sob quaisquer circunstâncias. Chamo de caráter a capacidade de manter princípios, independente da situação e do momento. O contrário disso é o casuísmo — quando o jornalista abandona as premissas da profissão para se sujeitar ao sabor daquilo que mais lhe convém. Casuísmo, como está claro, é um dos aspectos da falta de caráter.

Outro valor fundamental da civilização é a democracia. Esse deveria ser um alicerce inegociável na construção de cada um de nós. No entanto, é de assustar o quanto a democracia anda frágil nesse meio jornalístico. Estamos vendo isso ao vivo e em cores nessas eleições — traduzido na sordidez da mídia ao tentar arrastar o governo da presidenta Dilma Rousseff para o centro da sua politicagem. O desfile de “comentaristas” mal-educados, atribuindo inverdades a Dilma e ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, é uma constante. Isso se deve à prática comum de desrespeitar o direito do outro — uma barbaridade que, embora recorrente, ou talvez exatamente por isso, nem sempre aparece com clareza.

Falta para essa gente da mídia civilidade, que poderia vir como resultado de leis mais duras e mais plenamente aplicadas. Não se pode admitir a presunção de culpas e nem a exploração inescrupulosa de suposições, por meio de depoimentos habilmente colhidos e impiedosamente manipulados na busca de manchetes sensacionalistas. Em um conceito mais elevado de justiça, tal prática pode sim ser considerada criminosa.

Sociedade mais madura

Liberdade de expressão não é um direito hierarquicamente superior aos demais direitos e garantias individuais e coletivas. Na Constituição está no mesmo patamar o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas. Todos igualmente invioláveis e indispensáveis. É preciso haver um equilíbrio entre eles. A defesa da liberdade de expressão exige protegê-la contra abusos como estes. Na democracia, são tarefas conciliáveis. Fora disso, a “liberdade de imprensa” não passa de balela.

Essa civilidade poderia ser também fruto de uma sociedade mais madura politicamente, em que a democracia seja de fato um valor essencial, cravado mais fundo na nossa alma. Seria fruto de uma sociedade com a consciência de que existem regras mínimas de convivência que se não forem levadas a sério acabam levando ao caos social e à guerra entre concidadãos. Numa palavra: falta a essa gente levar a sério a serventia da democracia.

Valores democráticos

Democracia é, acima de tudo, reconhecer os direitos do outro. No meio jornalístico da mídia, no entanto, costuma-se pensar em democracia como garantia para seus abusos. Um ambiente verdadeiramente democrático, contudo, começa pela outra ponta: pelo reconhecimento dos nossos deveres, como jornalistas, e do respeito que devemos ter em relação aos direitos alheios. Só então, vencido esse estágio, é que podemos exigir a contrapartida dessa nossa correção — exigir que os outros, principalmente os governos, também cumpram seus deveres e respeitem os nossos direitos.

Outro aspecto da fragilidade dos valores democráticos no jornalismo da mídia é o fato de que, podendo, ele cassa os direitos dos seus adversários — como ocorre com essa matéria criminosa da Veja. Como se uma situação de confronto ou de disputa permitisse, possivelmente por algum direito divino, a esse tipo de jornalismo abrir mão de todos os parâmetros de conduta ética. O direito à voz do outro, ao contraditório, à visão oposta é uma prerrogativa fundamental do jornalismo — mesmo que este outro esteja dizendo algo que nos pareça um absurdo, uma sandice.

Não raro, esse é o primeiro direito do outro que a mídia revoga unilateralmente. Podendo calar o oponente, em nome de vencer no grito ou de encerrar mais rapidamente uma discussão que não lhe interessa, esse tipo de jornalismo o faz. Ao abdicar do princípio ético, ele abdica da democracia. E, por conseguinte, da própria civilização. Ao agir assim, a mídia induz a sociedade à barbárie, à regra louca do cada um por si, do não reconhecimento do outro, da incivilidade que termina em socos, tiros e facadas. Qualquer semelhança disso com o caminho que o Brasil trilhou como sociedade quando o país foi guiado por mãos conservadoras não é mera coincidência.

Por dentro da Abril

Para se entender a lógica criminosa desses grupos, nada melhor do que conhecê-los por dentro. E ninguém conheceu melhor a Editora Abril — que publica a Veja — desde o seu nascedouro do que o jornalista e escritor Gonçalo Júnior, que revelou suas entranhas no livro O Homem-Abril – Cláudio de Souza e a história da maior editora brasileira de revistas, revelando dados sobre o personagem retratado, que trabalhou para o grupo nas suas três primeiras décadas de existência. Entre março de 1951 e setembro de 1975, Cláudio de Souza passou por quase todos os departamentos da empresa.

Por oito anos, ele trabalhou como assessor pessoal do seu fundador, o então cidadão norte-americano Victor Civita. Foi ele quem ajudou Civita a falar o português corretamente. Gonçalo faz revelações surpreendentes — como os detalhes das tentativas do grupo norte-americano Time-Life de convencer Civita a criar um canal de TV em São Paulo. O dono da Abril, que poderia ser flagrado em delito por conta da sua nacionalidade, sugeriu que o grupo procurasse seu amigo, o brasileiro Roberto Marinho. Assim nasceu a Rede Globo de Televisão — porta-voz oficiosa da ditadura militar.

História de trapaças

Gonçalo, que também é autor do livro Guerra dos Gibis — que narra a chegada dos quadrinhos ao Brasil, vindos dos Estados Unidos em meados da década de 1930 —, comenta de passagem o papel da ditadura militar na consolidação da Editora Abril. “Embora fale das relações da Abril com o regime militar e destaque documentos encontrados no arquivo do Deops, minha preocupação foi cobrir o período em que o editor trabalhou lá”, afirma Gonçalo. E recomenda: “Longe da pretensão de contar tudo sobre a Abril, creio que deixo pistas interessantes para que outros pesquisadores venham a desenvolver trabalhos complementares sobre a Editora.”

O autor revela outros detalhes dos tortuosos caminhos trilhados por Civita. Um deles é o fato de o fundador da Abril ter permanecido no anonimato durante dez anos por ser estrangeiro. Assim ele conseguiu burlar as leis que o impediam de ser dono de uma empresa de comunicação. Até Civita conseguir a nacionalidade brasileira, as revistas da Abril saíam apenas com a assinatura de seu sócio, Gordiano Rossi, como diretor responsável. A primeira revista com editorial assinado por Civita foi a Quatro Rodas.

Civita possivelmente se inspirou na trapaça de outro conhecido editor, Adolfo Aizen, que lançou os quadrinhos no Brasil na década de 1930 por meio de um suplemento infantil no jornal A Noite. Em 1945, dizendo-se baiano o russo Aizen fundou Editora Brasil-América Limitada, a Ebal. Ele manteve a sua nacionalidade sob segredo por décadas. Outra revelação de Gonçalo sobre Civita é a de que o dono da Abril teria recorrido a empréstimos estrangeiros — um procedimento ilegal perante a legislação da época.

Programa de governo

Civita e Roberto Marinho podem ser considerados os impositores deste tipo de jornalismo totalmente desprovido de ética, muito comum nos dias de hoje na mídia. Eles trilharam, sem escrúpulos, os caminhos da influência norte-americana no universo cultual brasileiro. Durante a ditadura militar, consolidaram seus impérios lançando mão de trapaças, negociatas e autoritarismos. Até hoje, esses impérios — cujos métodos são utilizados pela totalidade dos grupos que controlam a mídia brasileira — se valem dessas armas para impedir que o Brasil avance no rumo do progresso social e da democracia.

Um exemplo disso foi o apoio aberto da Editora Abril aos governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) e os ataques baseados em mentiras e calúnias aos governos do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff. O filho de Cívita — Roberto, que comandou o império após a morte do pai — manteve por muito tempo uma foto de FHC em sua mesa para não deixar dúvida sobre a sua opção. “Pensam que a Abril apoia o programa de governo do Fernando Henrique. A questão está mal colocada. Não é a Abril que apoia o programa de Fernando Henrique. É o Fernando Henrique que apoia o programa de governo da Abril”, disse ele certa vez.

Operações clandestinas

A Abril também é acusada de usar uma montagem fraudulenta — por meio de empresas fantasmas, laranjas e lavanderias — para passar 30% do seu controle a um conglomerado de comunicação racista que sustentou o apartheid na África do Sul. Outro caso é a negociata com o grupo Telefônica. O assunto ganhou algum destaque depois que o senador Renan Calheiros rebateu os seus acusadores mobilizados pela Abril. Ele disse que a Editora já ficou conhecida como “Vileja” — pela vileza de seu jornalismo “desonesto, persecutório, panfletário e torpe”.

Para o senador, a tentativa da Abril de “fraudar a lei brasileira, de desrespeitar a concorrência, de agredir os interesses nacionais e de ludibriar o país, transferindo o controle societário da TVA e de outras duas operadoras para um grupo estrangeiro por quase um bilhão de reais, não é a primeira vez que ocorre”. “Não foi um acaso, não foi um desvio jurídico da Editora Abril. Trata-se de algo pior, de um vício, de um hábito delinquente: o hábito de desrespeitar nossas instituições, de ferir nossos interesses, para ocultar suas operações clandestinas, ilegais e imorais, enquanto cinicamente se autoproclama defensora dos interesses do Brasil”, disse ele.

O jogo bruto continua

A Veja é bem conhecida por desenvolver campanhas de linchamento, sem provas, contra “homens públicos e nossas instituições”. Segundo o senador, a Abril “esgueira-se, sorrateiramente, entre os veículos de comunicação, ampara-se nesta vital instituição e lá faz suas transações subterrâneas, imorais e antiéticas”. O senador também afirmou que o grupo mistura liberdade de imprensa com libertinagem de imprensa. “Jornalismo como esse, como instrumento de propaganda, amparado na força da repetição, da mentira, não é jornalismo, é fascismo, é nazismo”, afirmou.

É uma síntese precisa da Abril — e dos demais grupos midiáticos. Vale lembrar aqui o comentário feito pelo cientista político René Armand Dreifuss — que acreditou na possibilidade de o homem transformar a realidade —, autor do importante livro A conquista do Estado — ação política, poder e golpe de classe sobre o papel de uma “elite orgânica” de orientação empresarial na desestabilização do regime democrático pré-1964 para pôr no lugar a “ordem empresarial” após o “golpe de classe”, com o qual ele encerra a sua obra Transformações: matrizes do século 21: “E o jogo continua…” Cabe acrescentar: continua com sua forma bruta, sem regras, sem princípios, sem ética.

Lógica de “segurança nacional”

Sobre a Globo, comparsa histórica da Abril, até a mais desinformada telespectadora da novela das 8 está cansada de saber que ela é o maior grupo empresarial brasileiro do ramo de comunicações. Também não é segredo para ninguém que a Rede Globo de Televisão figura entre as quatro maiores do mundo, atrás somente das norte-americanas ABC, NBC e CBS. Tampouco chega a ser novidade que seus donos, os Marinho, são uma das famílias mais ricas do planeta. O que pouca gente conhece são os números precisos desse grupo de empresas iniciado em 1925, com a fundação do jornal O Globo no Rio de Janeiro. A falta de um balanço consolidado, a convivência de empresas abertas com outras de capital fechado, tudo isso costuma dificultar uma avaliação mais precisa do grupo.

O que se sabe é que o seu controle e participação em cerca de 100 empresas que empregam um contingente de mais de 12 mil funcionários inclui métodos abertamente gangsteristas. Uma das empresas que foi do grupo, a NEC — fabricante de centrais telefônicas, sistemas de telefonia celular, equipamentos de radiotransmissão e fibra óptica —, fundada pelo empresário Mário Garnero em associação com a NEC japonesa, por exemplo, passou às mãos da família Marinho em 1986 por meio de um episódio tenebroso.

Garnero alega ter sido obrigado a vender a sua parte na empresa mediante ameaças do então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães (ACM). A operação custou um milhão de dólares. A mesma empresa foi vendida alguns anos depois por 36 milhões de dólares aos seus donos originais sem que os amigos de ACM investissem um tostão. Em troca, a emissora de ACM (TV Bahia) ganhou a programação da Globo — que havia 18 anos estava nas mãos da TV Aratu, de Salvador. Negociatas deste tipo existem desde que a poderosa rede de televisão nasceu.

Contratos da Globo com rasuras

A Globo se consolidou pelas mãos da ditadura militar, que escolheu o grupo de Roberto Marinho para difundir a sua política ligada à lógica de ”segurança nacional”. Os golpistas precisavam de um canal de televisão oficioso. O Jornal Nacional, o primeiro telejornal transmitido nacionalmente, se caracterizou como o principal programa jornalístico da emissora recém-formada, constituindo um forte espaço para a propaganda oficiosa do regime. A negociata começou em 1961, quando a Globo firmou um contrato principal e um de acordo de assistência técnica com o grupo norte-americano Time-Life.

Pelo acordo, a Globo comprou equipamentos a uma taxa de dólar um terço mais baixa do que o valor de mercado em vigor. O grupo Time-Life daria assessoria técnica à emissora. De acordo com o contrato principal, o grupo norte-americano obteria parte dos lucros líquidos da Globo — ou seja, um ato ilegal, já que não podia haver participação estrangeira nos lucros de empresas brasileiras de comunicação. No contrato de assistência técnica constava a “obrigação” de o grupo Time-Life “colaborar” na elaboração do conteúdo da programação e noticiários — mais uma prática proibida.

Era uma violação do código brasileiro de telecomunicações da época. O acordo sequer foi apreciado pelo Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel). Apenas dois anos após a assinatura dos contratos a Globo enviou um deles — o de assistência técnica — para a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) — hoje com o nome de Banco Central (BC). Mesmo assim, os documentos não puderam ser lidos porque continham muitas rasuras. O contrato sem rasuras só seria entregue, por ordem do Contel, em julho de 1965.

“Manifesto” denuncia atos da Globo

Novamente para burlar as leis, a Globo, com o escândalo instaurado, trocou o contrato principal por um de arrendamento de um terreno onde se localizava a sede da televisão. Pelo contrato, a Globo seria locatária de um prédio vendido ao grupo Time Life. O problema é que o documento foi feito antes da venda do local aos norte-americanos. Ou seja: a Globo alugou um prédio que era seu. Em troca do uso, a televisão se comprometeu a pagar 45% do lucro líquido da empresa pelo aluguel. Somando aos 5% do lucro liquido, destinado à assessoria técnica, o grupo norte-americano detinha 50% da Globo.

A participação do grupo Time-Life como sócio majoritário num meio de comunicação com concessão pública era uma violação da legislação brasileira. Para impedir qualquer tipo de fiscalização, alguns documentos da transação desapareceram. Depois de muita insistência do Contel, a Câmara dos Deputados, contrariando os militares golpistas, decidiu instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso. O assunto ganhou dimensão de escândalo público quando empresários do setor lançaram um ”Manifesto à Nação” denunciando os atos da Globo e a entrada do capital estrangeiro na imprensa brasileira.

Assinaram o documento representantes de O Estado de S. Paulo, da Folha de S. Paulo, do Diário de S. Paulo, de A Gazeta, de A Gazeta Esportiva, do Diário da Noite, do Diário Popular, do Jornal da Tarde, da Última Hora, do Notícias Populares, de A Tribuna, de O Diário de Notícias Alemãs, do Sindicato dos Proprietários de Jornais e Revistas do Estado de São Paulo, da Associação das Emissoras de São Paulo e do Sindicato das Empresas de Rádio-Difusão do Estado de São Paulo — além de entidades empresariais do setor no então Estado da Guanabara e até em outros países da América do Sul.

CPI condena Globo por unanimidade

No dia 22 de agosto de 1966, a CPI divulgou a condenação, por unanimidade, da Globo. ”Os contratos firmados entre a TV-Globo e o grupo Time-Life ferem o Artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infrigência daquele dispositivo constitucional”, dizia o parecer do relator, deputado Djalma Marinho, que pertencia à Arena, o partido que sustentava a ditadura militar.

O primeiro presidente do ciclo militar, Humberto Castelo Branco, pedira que o caso fosse investigado. Mas seu sucessor, Artur da Costa e Silva, decidiu não acatar a decisão da CPI e apoiar oficialmente a Globo. Em 1969, o grupo Time-Life desistiu dos contratos. A emissora de televisão da família Marinho, no entanto, já era um poderoso meio de comunicação — posição conquistada por meio de linhas de créditos abertas pela então estatal Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel). “Sinto-me feliz todas as noites quando assisto ao noticiário, porque na Globo o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz”, disse certa vez o terceiro general no poder, Emílio Garrastazu Médici. Desde então, a Globo ganhou passe livre para agir à vontade — sem respeitar os limites do que se pode chamar de convivência democrática.

Uma sociedade democrática deve alargar ao máximo o leque de possibilidades individuais e garantir um lugar digno a cada um. Para isso, é preciso assegurar, por meio de um regime verdadeiramente democrático, o direito de a sociedade escolher seu destino. Remover entraves como esse representado pela mídia é uma necessidade que se impõe pela relevância da circulação de informações verdadeiras em uma sociedade civilizada. A democratização da comunicação não pode ser uma abstração com pouca relação com a realidade objetiva do país. Se esquecermos os ensinamentos da história, estaremos dando chance para o fortalecimento da tese de que um regime baseado na ideologia conservadora, de intolerância social e de homens autômatos, é insubstituível. Aí vem o fascismo.