São Paulo – “A economia que não se preocupa com a justiça social é uma economia que condena os povos a isso que está ocorrendo no mundo inteiro, uma brutal concentração de renda e de riqueza, o desemprego e a miséria. (…) Isso é coisa de tecnocrata alucinado, que acha que está tudo ok, e não está nada ok.”

“Primeiro estabilizar, depois crescer e depois distribuir é uma falácia. Não estabiliza, cresce aos solavancos e não distribui. Essa é a história da economia brasileira desde o pós-guerra.”

“De todos os direitos, (o livre pensar) é o que tem sido mais recorrentemente violado.”

Livre Pensar – Teaser from Andaluz on Vimeo.

 

As frases são de Maria da Conceição Tavares, portuguesa que chegou ao Brasil em fevereiro de 1954, pouco antes de completar 24 anos. Uma “moça tranquila” que se tornou “brava” aqui, segundo conta, aos risos, em uma das cenas do documentário Livre Pensar, dirigido por José Mariani. Mais do que a trajetória da economista conhecida pela postura enfática, o filme, de 75 minutos, confunde-se com a história de um país em sua busca por identidade e independência.

Fugindo da ditadura salazarista, grávida (de Laura), Conceição Tavares chegou em um momento conturbado no Brasil. Em agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas se suicidou com um tiro, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, então sede do governo. Mas ela presenciou uma era promissora, um “período de afirmação”, como definiu. “É um período alegre, de Bossa Nova, Cinema Novo, o diabo, arte, literatura”, diz Conceição, enquanto se exibem imagens da construção de Brasília. “Acreditei que o Brasil ia ser uma democracia e uma civilização original nos trópicos. E eu realmente acreditei.”

São muitas as aparições em que se constata a “braveza” de Conceição Tavares no falar. Mas há também cenas em que ela aparece tranquila, feliz. Como na comemoração de seus 80 anos, em 2010, na Casa do Minho, no Rio, em que Conceição dança, inclusive com o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que dá depoimento para o filme. No salão, cantam Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, canção imortalizada na Revolução dos Cravos. Alguém grita “Viva a democracia!”, ela exclama: “Viva 25 de Abril!”, a data histórica de 1974. O filme termina com Conceição em trajes típicos portugueses, novamente dançando. 

Tolerância
Mariani chama a atenção para a festa dos 80 anos, para a qual a imprensa não teve acesso. Ali, Conceição protagoniza uma cena praticamente inimaginável nos dias de hoje, ao receber o carinho de dois ex-alunos: Dilma Rousseff e José Serra, concorrentes à Presidência da República naquele ano, em eleição vencida pela petista. “Ela é muito agregadora. Ela tem essa ‘fúria’, essa veemência, mas é muito querida, tem esse lado carinhoso, de muitos amigos.”

O filho Bruno Tavares revê as imagens. E lembra que sua mãe nasceu em um 24 de abril, entre o dia de São Jorge (23) e justamente o da Revolução dos Cravos (25). Em outra cena do documentário, os dois estão assistindo a uma partida de futebol, e ela até comemora um gol, não identificado. Mariani conta que ela sempre gostou de ver jogos – no estádio, inclusive –, e torce pelo Vasco, time originalmente ligado à colônia portuguesa no Rio.

Matemática de formação, Conceição começa, no Brasil, a cursar a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde depois seria professora. Passa pelo BNDE, ainda sem o S de social, e em 1963 vai para a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Ali escrevi o ensaio Auge e declínio do processo de substituições de importação no Brasil, que se tornaria clássico.

Conceição foi aluna e assistente de Octavio Bulhões, economista de perfil conservador. Mas sempre manteve “uma perspectiva crítica da sociedade”, como nota o também economista Wilson Cano, um dos 13 entrevistados do filme. Ainda em 1958, ela observa: “Que ruim é a distribuição de renda neste país!”. No ano seguinte, é lançado Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, intelectual que Conceição refuta como referência, ao mesmo tempo em que apresenta o chileno Aníbal Pinto como mestre. 

Atualidade
É a terceira incursão de José Mariani no terreno da economia. Em 2005, ele dirigiu O Longo Amanhecer, cinebiografia de Celso Furtado, e em 2014, Um Sonho Intenso, panorama do pensamento brasileiro. Com o filme sobre Conceição Tavares, completa uma trilogia, mesmo que não pensada com essa finalidade. “Na minha cabeça, um filme foi gerando outros”, diz o autor. Com uma linha comum: a busca de uma nação, a utopia.

Para o diretor, o filme mostra também algo que parece perdido no Brasil atual, o exercício da tolerância sob a diversidade, como na cena em que Dilma e Serra mostram cordialidade, reunidos para celebrar o aniversário da professora. “É um arco. Esse espírito é atual por ter se perdido na sociedade, não dela. Acho isso fantástico. É possível (a tolerância) dentro desse jogo civilizatório.” 

Da mesma forma, as ideias de Conceição Tavares se revelam rigorosamente atuais, como nas críticas ao capital financeiro e à desigualdade. “Existe uma atualização do pensamento dela. Se atualiza porque o Brasil se move desse jeito, anda para frente e para trás. Nosso processo histórico é muito sofrido, muito duro”, comenta Mariani. “Certas pessoas têm um pensamento que se atualiza por si só.” 

Ao lembrar que não é economista, ele arrisca uma interpretação para o jeito telúrico de Conceição, que pode ser visto em muitas de suas intervenções. “Eu fui percebendo – posso estar um pouco errado, um pouco certo – que esse sentido da veemência, da crítica do nosso processo social, é uma coisa de estrangeiro. Acho que nós, brasileiros, naturalizamos o nosso descalabro.”

Depois de uma temporada no Chile, pela Cepal, Conceição retorna ao Brasil em 1973, pouco antes do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende. Vai para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde ajudaria a estruturar a pós-graduação. Outro entrevistado, o professor Carlos Gonçalves, se emociona ao lembrar de como ele e Conceição receberam a notícia do golpe no Chile: sentaram-se no pára-choque de um automóvel e choraram. Ela referiu-se ao episódio como “minha derrota”, assim como a queda de João Goulart. 

Conceição apresenta-se como de esquerda, desde sempre. Em outra imagem, em sala de aula, conta que aos 18 anos quase foi “em cana”, ainda em Portugal, porque estava fazendo um seminário sobre Platão. “Livre pensar não era propriamente muito bem aceito na república portuguesa. De todos os direitos, tem sido o mais recorrentemente violado”, afirma.

Em janeiro de 1975, no Brasil do AI-5, que também não era um terreno favorável ao pensar, é sequestrada em pleno Aeroporto do Galeão, no Rio. “Enfiaram um capuz, e aí ela foi para um prisão no Exército”, conta Laura, sua filha. Conceição ficou desaparecida quase uma semana. “Foi um horror”, lembra, em depoimento. “Rendeu uma certa psicanálise, porque eu fiquei com medo de ser professora.” 

Outro pupilo, Aloizio Mercadante, recorda de um dia em que, em vez de concluir uma tese, os dois foram ao cinema, justamente em uma sala que exibia Os Embalos de Sábado à Noite. Filme que ela detestou, reclamando, lá mesmo, do “americanismo chapado” e recebendo reclamações do público por causa do barulho. “Psiu o cacete”, respondeu, ao seu estilo. 

Já nos anos 1980, Conceição Tavares se dedica ao estudo da economia política internacional. Tempos de globalização. Ela fala em transição “para um lugar ruim”, citando o neoliberalismo, “uma tal instabilidade mundial que é uma crise atrás da outra”. Em aula, afirma: “A partir de 90 só duas áreas cresceram, e essas é que dão a geoeconomia mundial: os Estados Unidos e a Ásia do oeste. Europa pasmou, o Japão pasmou, e o Federal Reserve (o banco central norte-americano) faz o que quer com o dólar…” Denuncia a “ditadura do capital financeiro”, afirmando que “o neoliberalismo é a doutrina dos grandes grupos financeiros internacionais”.

Na Câmara
Nessa fase, entra na política partidária, filiando-se ao PMDB, agora novamente sem a primeira letra. Brinca, referindo-se a Ulysses Guimarães: “Nunca compliquei a vida do velho”. Participou da elaboração do programa Esperança e Mudança. No governo José Sarney, seu apoio ao Plano Cruzado ficou famoso – ela chorou na TV ao comentar o pacote. “Colocou a Conceição como figura midiática”, lembra no filme a economista Hildete Pereira de Melo.

Deixou o partido em 1989, ano da primeira eleição presidencial pós-ditadura, inconformada com o abandono da legenda à candidatura Ulysses. “Este nosso partido já não é meu”, disse Conceição ao velho líder, anunciando que iria para o PT. Segundo ela, a resposta foi: “Faz muito bem. Se eu fosse jovem, eu também entraria”. A economista, que achou essa resposta “uma graça”, se elegeu deputada federal em 1994.

“A minha experiência como deputada foi meio dramática”, conta Conceição, lembrando do governo Fernando Henrique e do início de um extenso processo de privatizações. “Foi o início pesado de uma política neoliberal. (…) Passei todo o mandato votando contra e fui sistematicamente derrotada, nunca votei com a maioria. Foi muito cansativo.” Sua filha Laura diz que, nessa fase, além das constantes brigas no Parlamento, a então deputada padeceu com duas hérnias de coluna.

Em entrevista de 1995, ela afirma: “Sou uma reformista convicta. Continuo onde sempre estive”. Ela não quis tentar a reeleição, mas continuou na ativa, em outras frentes, como no Fórum Social Mundial. Em 2002, em Porto Alegre, discursou com convicção, em seu estilo, mas falando também da tolerância, como citado por José Mariani.

“Se eu não acreditasse com a cabeça, com o coração, com a barriga, não vinha aqui para Porto Alegre para falar para um auditório destes aos quase 72 anos. Temos uma cultura, uma capacidade de negociação, brigamos como cães, mas depois vamos para a festa, juntos, isto é muito nosso, não tem esta coisa ‘não falo mais com fulano’, esta ideia de tolerância, da aceitação ao direito da discrepância. Isso é um avanço democrático da sociedade.” E se apresentou como uma militante “que não parará até a hora de morrer”. Pediu: “Marchem até morrer!”.

O filme avança até o governo Lula e o “ajuste convencional” do primeiro ano, em 2003. Ela conversa com o presidente e pede para que fale ao ministro da Fazenda (Antonio Palocci) sobre  juros. Lula autoriza, e a economista vai ao ministro para “parar com essa brincadeira”. Não dá em nada, e ela lamenta: “Vai dar desindustrialização, uma desgraceira”. 

Conceição destaca a redução da desigualdade no período Lula. Sua filha conta que ela sentiu a deposição de Dilma Rousseff, em 2016. “A coisa do golpe foi muito pesada para ela. O impeachment da Dilma adoeceu minha mãe”. 

A primeira exibição do documentário foi em abril, em evento no Salão Nobre da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), justamente para celebrar os 88 anos de Conceição Tavares. “Foi uma ovação de cinco minutos. Ela ficou muito feliz. Foi muito emocionante”, conta Mariani. Segundo relatos, Conceição está bem de saúde e atenta aos acontecimentos no Brasil. O diretor conta que ouviu falar que a economista ameaça retornar a Portugal caso Jair Bolsonaro vença as eleições.

Por enquanto, Livre Pensar percorre circuito universitário. Já foi exibido na UFRJ, na Universidade de Brasília (UnB) e na Unicamp. Confira abaixo as exibições previstas.

 

 

Livre Pensar – cinebiografia da Maria da Conceição Tavares           Direção: José Mariani                                                                     Duração: 75 minutos                                                               Entrevistados: Aloizio Mercadante, Bruno Tavares, Carlos Gonçalves, Carlos Pinkusfeld Bastos, Hildete Pereira de Melo, José Carlos Braga, Laura Tavares, Luiz Gonzaga Belluzzo, Pedro Paulo Zahluth Bastos, Ricardo Bielchowsky, Ricardo Carneiro, Sulamis Dain e Wilson Cano