Através desses artigos procuramos apresentar, de maneira sumária, as diversas maneiras que a questão povo brasileiro foi apreendida pelos principais expoentes da nossa inteligência no início do século XX. Na verdade, o nosso esforço se reduziu a resenhar as obras de maior influência na construção de uma visão sobre o Brasil e seu povo. Entre elas, Os Sertões, de Euclides da Cunha, Por que me ufano de meu país, de Afonso Celso, Retrato do Brasil, de Paulo Prado, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda.

Esses autores, a partir das teorias em voga na sua época (o determinismo geográfico, racial, psicológico e cultural), procuraram descobrir a essência do povo brasileiro, o que o diferenciava dos demais povos do mundo. Para alguns era tido como, essencialmente, triste (Paulo Prado) e, para outros, alegre (Gilberto Freyre). Uns o viam como cordial (Sérgio Buarque) e lhe outorgavam uma índole pacífica e conciliadora (Afonso Celso) e, também, havia aqueles que, pelo contrário, viam nele (o povo brasileiro) apenas, ou fundamentalmente, brutalidade e intolerância.

Apesar das definições contraditórias e, na maioria das vezes, antagônicas, todos esses autores estavam aprisionados a uma mesma problemática (de fundo idealista). Eles partiam sempre de uma questão: o que é o homem brasileiro? Assim, o pressuposto foi sempre o mesmo: existiria uma essência em geral que faria do brasileiro aquilo que ele é: triste ou alegre, pacífico ou violento.

Dos artigos ficaram de fora as tentativas pioneiras de entender o Brasil, realizadas pelos intelectuais marxistas. Na década de 1920 e início da de 1930 essas interpretações ainda davam os seus primeiros passos no país, embora tenham sido produzidos trabalhos significativos como Agrarismo e Industrialismo (Octávio Brandão, 1926), A caminho da revolução operária e camponesa (Leôncio Basbaum, 1934) e o clássico da historiografia marxista brasileira Evolução Política do Brasil (Caio Prado Jr., 1933). Ainda na primeira metade do século XX, Caio Prado Jr. publicou Formação do Brasil Contemporâneo – colônia (1942) e História Econômica do Brasil (1945). Estas obras representaram um salto de qualidade na tentativa de interpretação do Brasil, ao introduzirem um novo e mais vigoroso instrumento analítico: o materialismo-histórico.

Outro grande historiador marxista foi Nelson Werneck Sodré. Ele produziu sobre as classes sociais; a história militar, dos comunistas, da imprensa, da cultura brasileira etc. Especificamente sobre a formação política, econômica e social brasileira escreveu, entre outros, Formação Histórica do Brasil (1962), Introdução à Revolução Brasileira (1958), A História da Burguesia Brasileira (1964) e Capitalismo e revolução burguesa no Brasil (1990). Outros autores marxistas também se destacariam a partir da década de 1950, como Clóvis Moura, Paula Beiguelman, Fernando Novaes, Ciro Flamarion, Jacob Gorender e Florestan Fernandes.

Em relação ao debate sobre a definição de povo brasileiro, o que os difere os marxistas dos demais é o fato de não terem buscado descobrir um caráter nacional dos brasileiros. Ou seja, não procuraram as supostas características genéticas, psicológicas ou culturais genéricas, através das quais pudessem construir uma definição de povo brasileiro.

Para os marxistas, o povo brasileiro não seria uma determinação do clima, da raça ou mesmo da cultura trazida pelas três raças formadoras (portuguesa, africana e indígena). Não existiria nele uma essência geral, a-histórica. A sociedade – e, por conseguinte, o povo brasileiro – seria o resultado do processo complexo e contraditório de evolução da nossa formação econômica, político e social. Como esses diversos fatores estão em constante desenvolvimento, o povo também não pode ser considerado uma realidade estanque.

As contribuições dos marxistas foram, em primeiro lugar, negar a existência de uma essência geral do povo brasileiro – e, por sinal, em qualquer outro povo no mundo. Em segundo lugar, constatar que o povo não forma um todo homogêneo e está dividido em classes, frações de classe e categorias sociais em constante disputa. A existência das classes e da luta entre elas impõe dificuldades intransponíveis às teses idealistas sobre o caráter nacional de um povo. Estas tendem a pensá-lo de maneira homogênea, sem contradições significativas. Justamente aqui reside a maior diferença entre as interpretações burguesas e as comunistas.

Para os marxistas, nenhum povo é, essencialmente, alegre ou triste, teórico ou prático, organizado ou desorganizado. E, principalmente, nenhum povo é melhor ou pior do que outro. Embora em determinadas fases históricas possa predominar esta ou aquela característica psicológica, nesta ou naquela classe, fração ou categoria social. Sabemos, por exemplo, que um sentimento de impotência – apatia e desânimo – pode atingir o conjunto das classes populares depois de uma derrota política de envergadura. Situação que pode ser alterada num momento seguinte.

A noção de povo em Marx, Engels e Lênin

Veremos agora como os clássicos do marxismo – Marx, Engels e Lênin – definiram povo. Em primeiro lugar é preciso notar que, de maneira geral, eles buscaram fugir da problemática do caráter nacional.  Digo de maneira geral, pois os dois primeiros autores chegaram, especialmente durante a juventude, a flertar com certas teses essencialistas.

O abandono – ou secundarização – da problemática do “caráter nacional” não se deu devido ao pouco conhecimento desses autores em relação à psicologia, à antropologia e à sociologia modernas, pois eram profundos conhecedores da ciência de seu tempo. A principal razão é que ela era destoante – e entravam em choque – com a nova problemática inaugurada com o materialismo-histórico. Os determinismos, predominantes no final do século XIX, assentados em supervalorização da raça, meio geográfico, dos aspectos culturais e psicológicos, são substituídos pela análise da dinâmica instituída na relação entre forças produtivas e relações de produção, entre infraestrutura e superestrutura e entre os diversos ramos da superestrutura: ideológico e jurídico-político.

Vejamos, então, como Marx definiu sua noção de povo. No seu famoso Contribuição à Crítica da Economia Política, na passagem em que trata especificamente do método, Marx afirma: “A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes de que se compõe (…). Assim, se começássemos pela população teríamos uma visão caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passaríamos a conceitos mais simples. Partindo daqui, seria necessário caminhar em sentido contrário até chegar finalmente de novo à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas”. O mesmo método que possibilita construir um conceito mais preciso – e mais rico – de população, permitirá também aos marxistas construir um conceito mais preciso e rico de povo.

No entanto são nas chamadas obras históricas que Marx e Engels mais se preocuparam em apresentar uma noção de povo. Em As lutas de classe em França Marx escreveu: “No dia 4 de maio reuniu-se a Assembleia Nacional saída das eleições diretas. O sufrágio universal não possuía o poder mágico que os republicanos da velha-guarda acreditavam que tinha. Em toda a França, pelo menos na maioria dos franceses, viam eles cidadãos com os mesmos interesses, o mesmo discernimento etc. Era este o seu culto do povo. Em vez deste povo imaginário, as eleições francesas trouxeram à luz do dia o povo real; isto é, os representantes das diferentes classes em que ele se divide”.

Poucos anos depois, desta vez em O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, Marx expressou as mesmas ideias: “o democrata, por representar a pequena-burguesia, ou seja, uma classe de transição na qual os interesses de duas classes perdem simultaneamente suas arestas, imagina estar acima dos antagonismos de classes em geral. Os democratas admitem que se defrontam com uma classe privilegiada, mas eles, como todo o resto da nação, constituem o povo. O que eles representam é o direito do povo; o que interessa a eles é o interesse do povo. Por isso, quando um conflito está iminente, não precisam analisar os interesses e as posições das diferentes classes. (…) Têm apenas que dar o sinal e o povo, com todos os seus inexauríveis recursos, cairá sobre os opressores. Mas se na prática seus interesses mostram-se sem interesse e sua potência, impotência, então ou a culpa cabe aos sofistas perniciosos, que dividem o povo indivisível em diferentes campos hostis, ou o exército estava por demais embrutecido e cego para compreender que os puros objetivos da democracia são o que há de melhor para ele, ou tudo fracassou devido a um detalhe na execução, ou então um imprevisto estragou desta vez a partida”.

Embora em algumas passagens a noção de povo se confunda com o conceito de população, no geral, são tratados como coisas distintas. População é o conjunto de habitantes de um país e, assim, congrega todas as classes sem exceção. Povo representa apenas parte da população – a maior parte –, mas também se divide em classes.

Então, quais classes compunham o povo? Esta pergunta não pode seria respondida de maneira abstrata, fora da história da luta de classes. A definição de povo, segundo eles, dependeria da época e do lugar. Engels, escrevendo na Nova Gazeta Renana e em meio à Revolução alemã de 1848-1849, afirmaria: “A grande burguesia, antirrevolucionária desde o começo, fez uma aliança defensiva com a reação por temer o povo, isto é, os operários e a burguesia democrática”. Quando fala em burguesia democrática – em contraposição à grande burguesia – possivelmente esteja se referindo aos camponeses proprietários, à pequena e à média burguesia urbana. Este era o povo alemão em 1848.

Talvez, alguns meses antes, Marx e Engels não se recusassem incluir parte da grande burguesia na sua noção de povo alemão. A burguesia prussiana, escreveu Marx em A burguesia e a contrarrevolução, “não era, como a burguesia francesa de 1789, a classe que (…) encarnava toda sociedade moderna. Ela havia decaído ao nível de uma espécie de casta, tanto hostil à Coroa como ao povo, querelando contra ambos (…). Estava disposta desde o início a trair o povo e o compromisso com o representante coroado da velha sociedade, pois ela mesma pertencia à velha sociedade; representando não os interesses de uma sociedade nova contra uma sociedade velha, mas interesses renovados no interior de uma sociedade envelhecida. A burguesia entrou na revolução ainda pertencendo ao povo alemão, mas em algum momento ela se separou dele e se transformou em não-povo e depois em antipovo”.

Mais de 50 anos depois outro revolucionário marxista seguiria pela mesma trilha aberta por Marx e Engels e utilizaria a mesma noção de povo. “A social-democracia lutou e luta, com todo o direito, contra o abuso democrático-burguês da palavra ‘povo’. Exige que com essa palavra não seja encoberta a incompreensão dos antagonismos de classe no seio do povo (…). Porém, divide o povo em classes não com o objetivo de que a classe de vanguarda se encerre em si mesma, se limite com uma perspectiva estreita (…), divide o povo em classes para que a classe de vanguarda (…) lute com maior energia, com maior entusiasmo, pela causa de todo o povo, e à frente do mesmo”. Assim escreveu Lênin em As duas táticas da social-democracia na Revolução Democrática.

Continuou: “Vejamos agora quais as classes que podiam e deviam, na opinião de Marx, realizar esta tarefa – aplicar na prática, consequentemente, o princípio da soberania do povo, e repelir os ataques da contrarrevolução. Marx fala do povo. Porém nós sabemos que ele sempre lutou impiedosamente contra a ilusão pequeno-burguesa da unidade do povo, da ausência da luta de classes no seio do povo. Ao empregar a palavra povo, Marx não ocultava sob esta palavra a diferença de classes; o que ele fazia era unificar determinados elementos capazes de levar a revolução até o fim”. Então a noção de povo estava ligada diretamente às forças sociais interessadas em realizar as tarefas da revolução democrático-burguesa num primeiro momento e socialista num segundo. Não era uma categoria antropológica – ao gosto dos culturalistas – e sim sócio-política.

Por fim, apresentamos uma definição do líder comunista chinês Mao Tsetung, exposta no seu clássico Justa solução das contradições no seio do povo. O conceito de povo, afirmou Mao, “toma sentidos diferentes conforme os países e períodos distintos da história de cada país. Tomemos o nosso próprio país como exemplo. Durante a Guerra de Resistência contra o Japão, todas as classes, todas as camadas e todos os grupos sociais que participaram na luta de resistência contra a agressão japonesa pertenciam ao povo, enquanto (…) os chineses traidores à sua própria pátria e os elementos pró-japoneses pertenciam à categoria de inimigos do povo (…). Na etapa atual, período de construção do socialismo, todas as classes, camadas e grupos sociais entram na categoria de povo, enquanto todas as forças e grupos sociais que resistem à revolução socialista e hostilizam ou sabotam a edificação socialista são os inimigos do povo”.

O dicionário de filosofia soviético, organizado por Rosental e Iudin, define: “num sentido rigorosamente científico povo seria uma comunidade de pessoas, que se modifica historicamente, formada pela parte da população, camadas e classes, que pela sua situação objetiva estão em condições de participar conjuntamente na resolução dos problemas concernentes ao desenvolvimento revolucionário, progressista, de um dado país, num dado período”. Segue o texto: “Constitui um critério fundamental para se reconhecer se um determinado grupo da população faz parte do povo, ver o seu interesse e capacidade, objetivamente condicionado, para participar das tarefas do progresso. No decurso do desenvolvimento social (…) mudam as tarefas objetivas da revolução (…) pelo que também se modifica, inevitavelmente, a composição social das camadas que, em dada fase, representam o povo. A diferenciação entre povo e população apareceria com a divisão da sociedade em classes e desapareceria com ela. Só quando acaba a exploração do homem pelo homem, na sociedade socialista, de novo o conceito de povo abrange toda a população”.

Nos capítulos seguintes da série Descobrindo o povo brasileiro veremos como o conceito (ou noção) de povo aparece na obra dos dois historiadores marxistas brasileiros mais importantes do século XX: Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Jr. 

 

* Este texto, com algumas revisões e complementos, compõe o ensaio Descobrindo o povo brasileiro, publicado no livro Marxismo, história e revolução brasileira: Encontros e desencontros (Editora Anita Garibaldi, 2009).

** Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi

 

BIBLIOGRAFIA

 

LÊNIN, V. I. As Duas Táticas da Social-democracia na Revolução Democrática, Livramento, SP, s/d.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. Martins Fontes, SP, 1983.

__________. As lutas de classe em França, Avante! Lisboa, 1984.

__________. O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, Avante!, 1984.

ROSENTAL, M. e IUDIN, P. F. (org.). Dicionário Filosófico, verbete Povo, Estampa, Lisboa, 1977.

TSETUNG, Mao. Justa solução das contradições no seio do povo.