Além de poeta, foi ensaísta, crítico de arte, tradutor. Foi um dos escritores mais influentes do país, participando de vanguardas poéticas como o Concretismo e o Neoconcretismo, e de todos os grandes momentos da poesia nas últimas seis décadas. A obra literária de Ferreira Gullar ganhou o Prêmio Camões 2010, a maior honraria das letras lusófonas.

Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o poeta integrou o Centro Popular de Cultura da UNE (CPC) ao lado do dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o cineasta Leon Hirszman, Carlos Diegues entre outros artistas.

Foi preso, torturado, acabando por exilar-se na União Soviética, na Argentina e no Chile durante a ditadura militar. Posteriormente, rompeu seus laços com as convicções comunistas. Foi um crítico incisivo dos governos Lula e Dilma.

A poesia de Ferreira Gullar é um rico acervo que seguirá alimentando gerações afora de energia lírica, humanista e transformadora.

Leia a entrevista conduzida pelo diretor da Grabois, Fábio Palácio de Azevedo, que explora os aspectos mais progressistas da trajetória de Gullar:

A desintegração dos valores da arte – Ferreira Gullar

FÁBIO PALÁCIO DE AZEVEDO*PUBLICADO EM 01.02.1998

Ex-presidente da FUNARTE, fundador das vanguardas poéticas concreta e neoconcreta e autor de diversas obras de poesia, ensaios e ficção, Ferreira Gullar dispensa maiores apresentações: é um dos intelectuais brasileiros mais prestigiados da atualidade.  

A trajetória singular e até certo ponto ambígua deste maranhense de 68 anos é prova viva da complicada relação entre vanguardas latino-americanas de inspiração européia e as condições estruturais dos países subdesenvolvidos. Sua obra compreende duas fases: a primeira marcada pelo desmonte da sintaxe poética – operada pela idéia de exploração da dimensão material dos signos e de construção de uma poesia visual -, base das vanguardas concreta e neoconcreta; a segunda, relacionada ao rompimento com as vanguardas, à militância no Partido Comunista e ao alinhamento com as concepções sobre cultura popular elaboradas nos CPCs da UNE. Nessa época, com o panorama político nacional dominado pela discussão das “reformas de base” de Jango, Gullar passa a escrever poesia de cordel. De sua pena nasceram clássicos como João Boa Morte – Cabra Marcado para Morrer e o Poema Sujo. 

Autor de um ensaio já clássico, Vanguarda e Subdesenvolvimento, onde discute a dominação cultural e a alienação das vanguardas, ultimamente o poeta andou despertando novas polêmicas. Sua última obra aborda o problema da crise da Arte, relacionando-o com a sempre complicada relação entre Arte e Mercado. A partir de sua fina argumentação – respaldada em uma visão ampla da História da Arte e da relação sujeito-objeto no processo artístico Ferreira Gullar nos desperta uma saudável dúvida acerca daquilo que vivenciamos na atualidade: a crise geral da Arte? Ou, para além disso, a crise de uma determinada forma de assim concebê-la, gestada segundo as necessidades do merchandising cultural?

Princípios: De que forma o senhor caracteriza a crise da arte contemporânea? 

Gullar: Trata-se de um processo real, não de uma empulhação. É um processo longo, que começa com o cubismo, quando Picasso pinta a Les Demoiselles d’Avignon, quadro que rompe com a sintaxe da pintura tradicional. Ali começa esse processo. Surge o cubismo, que é uma cubificação da natureza, e depois o cubismo analítico, que é uma desintegração dessas formas geométricas de planos abstratos. Então surgem dois caminhos na arte: de um lado, o desenvolvimento dessa arte abstrata que nasce da cubificação, desemboca no neoplasticismo de Mondrian e vai se desenvolver criando uma linguagem geométrica abstrata, esse é um caminho; o outro é o que vai dar no dadaísmo, que tem início quando Picasso e Braque começam a pregar nos quadros pedaços de jornal, envelopes de carta, etc. Ao invés de desenharem um envelope de carta, eles pegavam um envelope, recortavam e colavam na tela. Essa colagem, utilizando um material de fora da pintura, um material já existente, criou uma revolução que foi o gênero chamado colagem, em seguida muito utilizado pelo dadaísmo. E, por insignificante que pareça, a partir daí a pintura vai se desintegrando. De um lado, ela elimina a figura, que torna-se abstrata, geométrica; de outro, elimina o pincel, o desenho, o trabalho do artista como tal. Então vem MarceI Duchamp, pega um urinol, desses de boteco, assina um pseudônimo e manda para uma exposição de arte. O que ele está dizendo com isto? Primeiro: o artista não precisa esculpir nem pintar para fazer Arte; Qualquer objeto retirado de sua função normal, isolado como forma, é arte. Isso vai desintegrando os princípios, as noções, os valores da arte. São coisas importantes, do ponto de vista da experiência visual e cultural, mas que na verdade são altamente destrutivas. 

No Brasil, o neoconcretismo leva essas experiências a um radicalismo extremo. Por isso ele é antecipador. Na pintura, a Lígia Clark leva o quadro a ficar totalmente branco; quando o quadro fica totalmente branco ela deixa de usar a tela e passa a usar formiplac; quando ela está usando formiplac passa a ser uma coisa estritamente material; aí ela começa a cortar o formiplac, o quadro estufa, deixa de ser uma superfície plana e daí a pouco está no chão, virou uma escultura. Não é mais pintura, virou uma forma no espaço. Esse processo vai desintegrando a linguagem. 

Em resumo, o principal problema da arte contemporânea é que se confundiu expressão com arte. Perdeu-se a noção de que uma coisa pode ser expressiva sem ser arte. Por exemplo: se eu dou um grito, isso é expressão, mas não é arte. Para que esse grito se torne arte, é preciso que eu o transforme num poema, ou que um pintor como E. Münch faça um quadro como “O Grito”, em que aquilo vira uma obra plástica. Se eu me sentar no chão em cima de terra, mesmo que seja no museu, não é obra de arte. Pode ser uma atitude, uma performance adotada como protesto, como manifestação, mas não é obra de arte. 

Princípios: Qual é exatamente a diferença entre expressão e obra de arte?

Gullar: A obra de arte, ao contrário da expressão pura, necessita da elaboração de uma linguagem. É o que eu digo: tudo isso chega a um ponto tal que um pintor como Joseph Bueys – que levou suas experiências a um radicalismo extremo – afirma que todo mundo pode fazer arte. Claro! Se arte é pegar, como ele faz, um pedaço de trilho, cortar e pendurar na parede, qualquer pessoa pode fazer. Mas eu duvido que qualquer pessoa escreva uma sinfonia como Stravinsky, ou pinte uma Guernica como Picasso. Por isso eu afirmo: não é uma empulhação, mas uma confusão que vai surgindo de um processo de desintegração da linguagem. 

De modo que, para mim, a crise baseia-se, por um lado, na confusão entre expressão e arte, que são coisas diferentes; por outro lado, há também o problema da busca obsessiva do novo. Buscar o novo, do ponto de vista da arte, é uma futilidade. Você faz o novo – e não existe arte que não implique no novo. Eu não vou escrever um poema que já foi escrito, nem vou repetir o meu próprio poema. Qualquer poema que eu escreva, para ser poema, deve ter algo de novo dentro dele. Mas não precisa ser um paletó de três mangas. Isso é um outro dado. 

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