O jornalista Martin Jacques é um sujeito que foi passar as férias num lugar diferente e descobriu um mundo. “Fiquei completamente fascinado pelo que vi. Eu sabia dos números, das estatísticas, mas ver é crer. Esta experiência teve um impacto enorme sobre mim”, revela. Ele fala da China, o país que sai da categoria de grande fabricador de imitações e produtos de má qualidade para se transformar em líder em tecnologia, de economia forte e ainda capaz de ditar regras no cenário geopolítico. Jacques percebeu esses movimentos. “Desde essas férias, não tive mais o desejo, o apetite de trabalhar no Ocidente. Queria descobrir o que estava acontecendo na Ásia Oriental”, recorda.

Mais do que buscar o segredo chinês, foi percebendo que a receita do sucesso do grande dragão asiático passa pela própria história do país e sua visão de mundo. Para ele, enquanto o Ocidente não apreender que é preciso levar isso em conta, vai ficar observando a ascensão chinesa enquanto afunda em crises políticas, econômicas e sociais. “A razão pela qual o Ocidente vem tendo tanta dificuldade em entender a China é que a mentalidade ocidental é a de pensar o mundo em seus próprios termos, tentar encaixar as coisas neles. A China não se encaixa aí”, aponta, na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line.

O jornalista demonstra como nem sequer podemos considerar o país uma potência nos padrões que conhecemos. “A China é bem diferente do Ocidente, portanto será um tipo de potência bem diferente, por exemplo, dos Estados Unidos ou, antes disso, da Inglaterra”, exemplifica. Assim, para ele, categorias e conceitos ocidentais não dão conta da complexidade da China. É o caso, por exemplo, de Estado-nação. “Portanto, a noção de Estado-civilização congrega e contém muitas diferenças dentro de si. É uma forma heterogênea, diferente de como costumam ser os Estados-nação ocidentais”, explica. “A China é a expressão mais importante de um fenômeno mais amplo, que é o crescimento em importância dos países em desenvolvimento, que formam o lar de aproximadamente 85% da população ao redor mundo”, conclui.

Martin Jacques é jornalista, pesquisador e analista político britânico. Graduado em Economia pela Universidade de Manchester, é também doutor pelo King’s College, em Cambridge. Seu interesse pela Ásia começou em 1993 e em 2009 publicou When China Rules the World: The End of the Western World and the Birth of a New Global Order (Penguin Books, 2012). Também é autor de ‘Implications of the Rise of China’, in Andrew Gamble and David Lane, eds, The European Union and World Politics (London: Routledge, 2009) e ‘The Eight Differences That Define China’, in David Shambaugh, ed, The China Reader: Rising Power Oxford: Oxford University Press, 2016), entre outras obras.

A entrevista foi originalmente publicada nas Notícias do Dia de 12-10-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – É possível afirmar que a crise financeira mundial, a partir de seus efeitos devastadores sobre o Ocidente, tem aberto caminho ao crescimento chinês? Por quê?
Martin Jacques – O crescimento chinês contou essencialmente com a ajuda da crise financeira no Ocidente, porque o crescimento da China, desta forma drástica, data, na verdade, do começo das reformas econômicas de 1978, e durante 30 anos o país cresceu cerca de 10% anuais. Claro que o drama da crise financeira ocidental basicamente foi o de entrar num modo de crescimento extremamente baixo. Na verdade, inicialmente estes países do Ocidente entraram numa situação negativa. Enquanto isso, o crescimento chinês continuou com o seu programa. Portanto, desde a última década, ou mais, até muito recentemente, isto significou que a China rapidamente se aproximou dos Estados Unidos.

IHU On-Line – Por mais de 200 anos, o mundo vive uma supremacia ocidental. Como compreender que, a partir do século XXI, esse protagonismo seja assumido por um país como a China, que se distingue até mesmo de seus vizinhos orientais?
Martin Jacques – É verdade que, no final do século XVIII, com a Revolução Industrial na Inglaterra, vimos uma rápida ascensão da Europa. Durante o século XIX, a Europa passou a ser, de longe, o continente mais avançado do mundo, resultando, também por descobertas anteriores, na migração que se seguiu. E, de fato, por 200 anos o mundo, a economia mundial, a política e a cultura global foram dominadas pelo Ocidente.

Hoje, está absolutamente claro que este período chegou ao fim. A ascensão da China mudará este cenário, irá transformá-lo. O centro de gravidade da economia global está mudando em direção ao Oriente. É difícil imaginar que alguma coisa vá deter esse movimento, talvez uma guerra nuclear.

Portanto, estamos vendo, agora, a ascensão da China e, provavelmente, em grande parte da Eurásia . Podemos ver bem claramente na Europa o declínio progressivo do Ocidente. O principal problema é que o seu índice de crescimento está atualmente bastante baixo, e os Estados Unidos também, em comparação com a China, estão em declínio há bastante tempo.

IHU On-Line – O que significa, do ponto de vista cultural, a ascensão da China como grande potência mundial? Em que medida podemos falar em supressão de perspectivas ocidentais, como o humanismo?
Martin Jacques – Este fenômeno está sendo visto, primeiramente, como um desenvolvimento econômico. Mas as suas implicações, evidentemente, são muito mais amplas do que aquelas ocorridas pelas ascensões do Ocidente, que foram conduzidas pela Revolução Industrial e que alcançaram muitas áreas: política, moral, intelectual, cultural, e assim por diante.

Além disso, já estamos testemunhando o início de um impacto mais amplo da China além do simplesmente econômico. Este impacto ainda está nos estágios iniciais. Para o resto do mundo, a China esteve mais ou menos invisível até bem recentemente, nos últimos 200 anos, por causa da situação política, pela falta de desenvolvimento. Isso tem mudado. Em termos históricos, o mundo está se tornando cada vez mais familiarizado com a China e de forma muito rápida.

No momento, existe uma tendência muito forte, certamente no Ocidente, mas creio que se repete, em certo grau, nos países em desenvolvimento também, que é a de pensar a China em termos ocidentais, o que é um equívoco. A China é bem diferente do Ocidente, portanto será um tipo de potência bem diferente, por exemplo, dos Estados Unidos ou, antes disso, da Inglaterra.

IHU On-Line – Do ponto de vista político e econômico, que transformações a ascensão chinesa pode provocar em escalas globais?
Martin Jacques – Durante os últimos 200 anos, o mundo esteve dominado e governado por uma pequena parcela da humanidade, que é a que compõe o Ocidente hoje, em particular, porque a proporção da população mundial diminuiu. Mas provavelmente estamos falando de cerca de 15% da população do mundo. Assim, a ordem global, nesse período ocidental, pode ser vista como uma ordem bastante autoritária. Hoje, a ascensão da China, que já, naturalmente, representa cerca de 1/5 da população mundial, precisa ser vista em termos mais amplos do que apenas a ascensão de um país. A China é a expressão mais importante de um fenômeno mais amplo, que é o crescimento em importância dos países em desenvolvimento, que formam o lar de aproximadamente 85% da população ao redor mundo.

Portanto, a grande mudança global que temos testemunhado é a de um mundo dominado por uma minoria extremamente pequena e privilegiada do Ocidente – e do Japão, se quisermos acrescentá-lo, mas essencialmente ocidental – para uma situação onde o mundo será, cada vez mais, dominado por fenômeno bastante diferente, a ascensão de países em desenvolvimento. E a China é o ator predominante dentro deste contexto, pois se olharmos do ponto de vista da autoridade, veremos que a realidade chinesa é muito diferente, por exemplo, da dos Estados Unidos. É diferente na sua política externa, na abordagem econômica etc., na maneira como estabelece relações com outros países em desenvolvimento. Em certo sentido, isto tem ajudado em seu próprio desenvolvimento e transformação.

Assim, vejo essa realidade como uma fonte de recursos abrangentes para o novo contexto. Mas também, quando se fala da China como uma potência global – ou uma potência global por vir, um país que tende a se tornar uma grande potência –, as pessoas projetam certas características da história, por exemplo, dos Estados Unidos. Proceder assim é um grande erro, pois a China vem de um tipo de história e cultura bastante diferente. Esta história e cultura irá se refletir na maneira como o país se comporta e se expressa.

Imposição militar

Na história das potências ocidentais, por exemplo, é típico o emprego do poder militar. Mas, na história chinesa, essa não é uma característica, não é o seu modo de expressão, mesmo em seus – em termos históricos – momentos mais influentes. Portanto, precisamos pensar a influência da China no nível global mais em termos econômicos (o país irá se tornar extremamente influente, vai ser mais influente do que os Estados Unidos já foi alguma vez) e em sua influência cultural. Não creio que a China se apresentará ao mundo sob a forma militar ou que vai se envolver numa intervenção política, como é bem típico de países da Europa e dos Estados Unidos.

IHU On-Line – O senhor considera que a China não é um Estado-nação e sim um Estado-civilização. No que consiste essa diferença?
Martin Jacques – Quero fazer um esclarecimento aqui que é sobre a periodização histórica. No Ocidente, a história é datada no sentido moderno, em grande medida, a partir do século XVIII. E, claro, neste período ocorre uma mudança do Estado-nação como uma nova forma de unidade política no mundo. Essa forma possui várias características: um Estado bastante centralizado, uma forte tendência no sentido de conjuntos dominantes (ou de um conjunto singular dominante) de etnias, certas concepções de soberania etc.

Se, hoje, quisermos ver o mundo em lentes chinesas, precisaremos ter uma periodização completamente diferente. Não se pode começar a história a partir do final do século XVIII. É preciso, provavelmente, começar por algo como o ano 211 antes de Cristo, com a primeira forma unificada da China, com a Dinastia Qin . Portanto, estamos falando de um período de dois mil anos. Não estamos falando de um Estado-nação. Estamos falando de uma civilização, ou uma civilização que, em certo grau, se tornou mais ou menos o equivalente daquilo que se tornou o império chinês. Porque a China é, essencialmente, um continente multiétnico, multinacional. Na maior parte de sua existência, até o final do século XIX, a China não foi um Estado-nação; este é um desenvolvimento bastante recente, que tem um pouco mais de um século. Naquele longo período, a China foi predominantemente um Estado-civilização. Não possuía fronteiras claras. As fronteiras só vieram a se desenvolver claramente em 1949, e não havia a sensação de se estar nas mãos da raça dominante. Na verdade, existem muitas raças na China.

Portanto, a noção de Estado-civilização congrega e contém muitas diferenças dentro de si. É uma forma heterogênea, diferente de como costumam ser os Estados-nação ocidentais. A China percebeu que o final do século XIX começava a exigir as características de um Estado-nação. Assim, este país constitui uma mistura de um Estado-civilização e um Estado-nação. Ele exige aquelas características do Estado-nação porque se viu forçado a se adaptar ao sistema internacional projetado pela Europa e, mais tarde, pelos Estados Unidos, pois estava vivendo num mundo essencialmente sob os termos dos valores e normas ocidentais.

Imposição do Estado-nação

A ascensão da China – e não só deste país, pois acho que devemos olhar para outros também, como a Índia e o Irã – não se enquadra nesta convicção de Estado-nação. Essa é uma forma tipicamente europeia que, depois, foi exportada com a migração para os Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, e assim por diante. Então, após a Segunda Guerra Mundial e com a descolonização, aquela forma, de uma maneira pouco apropriada, porém bastante compreensível, passou a ser uma exigência, por exemplo, dos países que recentemente haviam se tornado independentes na África. Nesses lugares, como na África, realmente, um Estado-nação na forma europeia foi completamente inapropriado.

Este tema suscita questões históricas profundas sobre o futuro, como: até que ponto a ascensão da China sinalizará uma nova forma de política, uma maior diversidade na maneira como os países se expressam, e assim por diante. Em geral, nos países ocidentais a atitude essencialmente tem sido: “Seja como nós, nós somos o formato que vocês precisam imitar”. Esta questão sobre a China como um Estado-civilização é extremamente interessante e é fundamental para entendê-la, mais até do que o fato de o país ter adquirido, ao longo do último século, algumas características do Estado-nação.

IHU On-Line – Como compreender essas lógicas chinesas, um país que assimila valores e perspectivas ocidentais, mas que mantém sua gênese, reforçando suas concepções de mundo?
Martin Jacques – Não creio que podemos compreender a China em termos ocidentais. E a razão pela qual o Ocidente vem tendo tanta dificuldade em entender a China, há tanto tempo, é que a mentalidade ocidental é a de pensar o mundo em seus próprios termos, tentar encaixar as coisas neles. A China não se encaixa aí. Poderíamos dizer o mesmo sobre outros países, evidentemente, ainda que em graus diferentes, como a Índia, por exemplo.

Assim, nesse contexto, a China conta com duas características. Uma é bastante antiga e muito importante: o país nunca foi seriamente colonizado. Os portos que haviam participado de tratados internacionais foram colonizados desde meados do século XIX, mas a maior parte da China não foi colonizada. Então, o país permaneceu e reteve muitas de suas continuidades e características históricas, como um tipo muito, muito diferente de país.

É evidente que ela vive num mundo com o qual está em interação. Portanto, adquiriu certas características – ou compartilhou, pegou emprestado, adotou – de outros países, incluindo países ocidentais. Mas não podemos dizer que a China foi fundamentalmente ocidentalizada. E o meu argumento é, justamente, que a China é essencialmente um Estado-civilização antes de simplesmente ser um Estado-nação. Sem essa premissa, não podemos compreender este país.

Transformações e incompreensões

Por isso penso que a ascensão da China levará a mudanças fundamentais na maneira como o mundo está construído. E não estamos prontos para isso, pois não entendemos a China. Nós a subestimamos seriamente, nunca fomos capazes de compreender propriamente porque a ascensão econômica da China é tão drástica e tão bem-sucedida. Sempre ouvimos que o crescimento chinês “não é sustentável, chegará ao fim, haverá uma crise”. Subestimamos o sistema político chinês. Sempre se diz que este sistema político não se adequa ao seu propósito, que é disfuncional, que não é democrático – e por democrático se quer dizer que não é no estilo ocidental de democracia e, portanto, é insustentável.

Pelo contrário! Na verdade, o sistema político chinês é, a meu ver, muito funcional e muito bem-sucedido. É bastante diferente do que estamos acostumados nos países ocidentais, mas é um sistema de governo altamente consistente para aquele que é, convenhamos, um continente. Não devemos esperar que o sistema político chinês se ocidentalize de alguma forma. Na realidade, a crise que esperávamos para o sistema político chinês está essencialmente acontecendo no momento, só que no Ocidente.

O lar do Estado

Outra coisa que gostaria de enfatizar: embora a revolução de 1949 na China tenha marcado uma grande mudança, uma grande transformação histórica no país e em seu sistema de governo, está também claro que os governos chineses de hoje, no período moderno, ainda possuem linhas muito distintas de continuidade com uma história muito antiga, com o sistema imperial. A China é, provável e historicamente, o lar do Estado como o conhecemos, a origem do Estado moderno. É por isso que o sistema de governo chinês é tão competente, pois possui uma história muito longa.

IHU On-Line – O senhor trabalha com a ideia de modernidades concorrentes. No que consiste essa perspectiva e como ela pode explicar o crescimento chinês?
Martin Jacques – Os anos de predominância ocidental constituíram uma modernidade no singular, existe uma modernidade. E é uma modernidade ocidental. Evidente que existem diferenças, mas, a esta altura, empregamos uma generalização que tem a ver com a modernidade ocidental. Assim, o argumento é o de que existe uma potência para a modernidade e, por assim dizer, é a nossa potência, forçando todos os países a segui-la. É um pouco como viver numa escada rolante, onde estamos todos em estágios diferentes da escada, mas cada um se dirige à mesma direção, e perto do topo da escada estão os Estados Unidos e outros países ocidentais.

É um erro completo, pois esta noção de modernidade reduz a questão essencialmente a um assunto de economia e tecnologia. Mas a história e a cultura são fundamentais para o caráter de modernidade de um país. Vejamos um país como o Japão, que é muito moderno, muito desenvolvido. A modernidade japonesa é muito diferente da modernidade ocidental. Na realidade, isto está claro há bastante tempo. Mas, de alguma maneira, esta ideia de uma modernidade singular prevaleceu no Ocidente. Desde o final do século XIX, a modernidade japonesa tem permanecido bastante diferente.

Civilização inclusiva

Vivemos num mundo com o declínio do Ocidente e com a ascensão dos países em desenvolvimento, com a ascensão da China e de muitos outros países. Assim, estamos vendo a ascensão de muitas modernidades. Existem modernidades múltiplas, não uma modernidade singular. O declínio dos Estados Unidos tem, na verdade, possibilitado este processo e, de certo modo, permitido este espaço que não existia tão facilmente antes.

A aptidão da China, por exemplo, para estas questões é bem diferente da do Ocidente. Uma das frases políticas dos chineses é “civilização inclusiva”, o que pode ser um outro modo de dizer que existem modernidades concorrentes. Há muitas civilizações diferentes. Precisamos aprender a nos darmos bem com cada uma e respeitar as diferenças, aprender com todas.

IHU On-Line – Até que ponto esse crescimento chinês está associado à figura de Xi Jinping ? Como compreender sua influência geopolítica hoje?
Martin Jacques – Não acho que podemos reduzir o crescimento chinês a Xi Jinping, porque ele é presidente e secretário-geral [do Partido Comunista Chinês] apenas desde 2012. Então, ele ainda é uma figura muito recente no contexto de transformação da China. A transformação moderna chinesa começa em 1949 com a revolução, com Mao , porque ela criou a estrutura, a possibilidade para o que se seguiu. Não foi um período bem-sucedido de crescimento econômico, manteve-se um índice de crescimento de 5 a 10%, mas sem muito sucesso e com graves equívocos. Mas com a saída de Deng Xiaoping , em 1978, temos uma mudança fundamental.

Então, depois de Mao, a próxima transformação fundamental é Deng Xiaoping. É ele quem elabora um novo tipo de estratégia, quem redefine a noção de socialismo para incluir não apenas o planejamento central, mas o mercado também. É ele quem rejeita a ideia de socialismo em um único país, o que fora predominante no pensamento socialista/comunista, e é ele quem sustenta que a China precisa se integrar com o mundo, em vez de viver isoladamente, ideia sustentada como sendo um valor. Tal estratégia não tinha funcionado no país antes; na verdade havia fracassado no caso da União Soviética também.

Isso me leva a Xi Jinping. Acho que, de fato, Xi Jinping marca uma transformação importante na política chinesa. Ela já havia sido antecipada, de várias maneiras, durante o período de Hu Jintao . Não se pode pensar somente a partir de 2012, mas, por conveniência, podemos dizer que, por volta desse período, a China começou a conceber a sua tarefa, o seu desenvolvimento de um modo diferente. Mas, até que ponto diferente?

Em primeiro lugar, e isto certamente começou um pouco mais tarde, na possibilidade de desenvolver uma economia moderna e mais sofisticada, que fosse muito mais avançada tecnologicamente, e se valorizou isso. Em segundo lugar, a China não mais deveria ser vista simplesmente em termos econômicos, como aconteceu até aquele momento, tanto dentro da China quanto no resto do mundo. Mas a China desenvolveria um senso do seu próprio lugar no mundo, politicamente, culturalmente e em termos militares, e não só na esfera econômica. Em terceiro lugar, a China, em vez de apenas se adaptar ao sistema internacional, que herdou e que foi projetado essencialmente pelos Estados Unidos desde 1945, passou a se tornar proativa em relação à natureza e ao formato da ordem internacional. E, claro, desde então vimos duas de suas maiores iniciativas: o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura e o projeto Um Cinturão, Uma Rota , que são exemplos marcantes – em particular Um Cinturão, Uma Rota, que leva a China a desempenhar um papel muito diferente no mundo.

IHU On-Line – Como o senhor analisa as disputas entre China e Estados Unidos? É possível afirmar que os EUA podem orquestrar uma reação para que não percam sua centralidade geopolítica para a China?
Martin Jacques – Não creio que deveríamos nos surpreender com o que está acontecendo, mas muitas pessoas se surpreenderam. As lideranças chinesas subestimam as possibilidades de seu desenvolvimento. Por que deveríamos ficar surpresos? Ora, os Estados Unidos há tempo se veem como o chefe do mundo e esperavam – e esperam – continuar nessa posição. Eles acreditavam em duas coisas: primeiro, que a China iria progressivamente se ocidentalizar, que a modernização chinesa iria fracassar a menos que se ocidentalizasse, essencialmente na economia e na política, por exemplo.

Em segundo, os Estados Unidos não acreditavam que a ascensão da China se sustentaria da forma como tem se sustentado e de maneira tão rápida. Portanto, os Estados Unidos, de um modo fundamental, interpretaram equivocadamente aquilo que a ascensão chinesa está representando, que este país era capaz de realizar esta transformação e que não se tornaria, neste processo, como os Estados Unidos.

Temos aqui um aspecto importante. Se pegarmos o discurso do “Estado da União” proferido por Barack Obama , em 2010 ou 2011, veremos que foi dito que a ideia de um declínio americano era um engano completo. O que se vê é que os americanos claramente estão em declínio há um tempo significativo. Trump , nesse sentido, representa o primeiro líder americano que, de fato, acredita – ou reconhece – que os Estados Unidos estão em declínio. É claro que ele acha que pode reverter a situação.

Até Trump, os Estados Unidos negaram o seu próprio declínio. De repente, no contexto do atual presidente, a China se torna não uma espécie de competidor, mas também um parceiro. A China é, hoje, vista como uma ameaça à hegemonia americana. Assim, começou a ser desenvolvido, no governo Trump, uma ideia de tentar fazer com que a ascensão da China fique mais difícil e, se possível, que seja contida. Daí a guerra comercial, mas mais que uma guerra comercial. O que se quer é tentar impedir que a China tome a liderança tecnológica em setores importantes, que é exatamente o que ela está, neste momento, começando a fazer. Através das empresas Alibaba e Tencent , por exemplo, podemos ver que a China já está à frente do Vale do Silício.

Tentativas de frear a China

Então, é uma espécie de tentativa por parte dos Estados Unidos de se manter em suas posições de hegemonia no mundo e impedir a ascensão da China. Realmente, não creio que conseguirão. As suas iniciativas podem ter efeitos negativos sobre aquele país, mas também terão efeitos negativos nos Estados Unidos. As ações, por exemplo, vão desvalorizar o contexto americano. A questão é: como ser um ator dinâmico no mundo, reduzindo a si próprio ao cortar a participação americana no mercado chinês, por exemplo? O mercado chinês já é do mesmo tamanho que o mercado americano. Em 2030, o mercado chinês provavelmente terá o dobro do tamanho do mercado americano.

Vejo esta contenda, esta guerra comercial como a tentativa dos Estados Unidos de impedir ou dificultar a ascensão chinesa. Isto terá consequências negativas para ambos os países e para o resto do mundo. Bem francamente, não consigo ver como algo assim poderia dar certo. E, de certo modo, provavelmente irá acelerar a ascensão da China e acelerar o declínio dos Estados Unidos.

IHU On-Line – A primeira edição de seu livro, When China Rules the World: The End of the Western World and the Birth of a New Global Order , é de 2009. Recentemente, foi lançada uma edição revisada e ampliada. O que mudou no cenário global e na China desde a publicação da primeira edição e o que o forçou a pensar na necessidade de atualizar essa obra?
Martin Jacques – Concluí o livro em 2008, começo de 2009. Lembremos que ainda vivíamos o período da crise financeira. Eu, portanto, estava à espera de saber qual seria o impacto da crise. Vivíamos um momento muito importante da história ocidental contemporânea, com consequências profundas. Então, enquanto os desenvolvimentos ocidentais essencialmente estiveram estagnados economicamente, a ascensão da China continuou. A posição da China na economia global relativamente se acelerou. A economia tem duplicado de tamanho a cada sete anos. O padrão de vida tem se duplicado a cada sete anos.

Obviamente o resultado na China é uma transformação drástica tremenda. Achei que deveria trazer alguns destes desdobramentos na segunda edição. Eu o fiz em 2012 e foi essencialmente um processo de atualização, elaboração, desenvolvimento de certos argumentos. Então também escrevi um novo capítulo de abertura para a segunda edição chinesa em 2016, que buscou trazer a mudança da era Deng até a era Xi, na China.

Hoje, eu poderia reescrever o livro. O pensamento se move tão rapidamente. Mas, na verdade, no momento estou trabalhando num livro completamente novo. Vai levar alguns anos para eu apresentá-lo ao público.

IHU On-Line – Como vê a crise financeira internacional dez anos depois?
Martin Jacques – Foi claramente a crise mais importante, a mais séria desde 1931, dos países ocidentais. Ainda hoje as economias ocidentais não se recuperaram devidamente. As pontuações da taxa de juros estão extremamente baixas, ou próximas a zero, na Europa toda. A economia ocidental está ainda em tratamento intensivo. A dívida ainda é um problema nas economias ocidentais. Portanto, olhando hoje, vejo que a crise foi um evento singularmente importante. A instabilidade política que se pode ver hoje nos países ocidentais é um produto direto da crise financeira. Claro, como já mencionado, ela acelerou a ascensão da China, acelerou esta mudança global profunda do Ocidente para a China. Foi um evento de extrema importância.

IHU On-Line – O seu interesse pela China começou de forma inusitada. Gostaria que nos contasse o que despertou sua atenção para esse país.
Martin Jacques – Na verdade, eram minhas férias. Eu já era escritor e editor, um tanto conhecido em meu país e em outros países da Europa, mas nada muito além disso. Saí de férias em 1993. Hoje não parece tão radical, mas na época foi: eu passei pela China, Hong Kong, Malásia e Singapura. Fiquei completamente fascinado pelo que vi. Eu sabia dos números, das estatísticas, mas ver é crer. Essa experiência teve um impacto enorme sobre mim. Lembro de uma questão que me ocorrera naqueles dias: é tão moderno; estamos no Ocidente? E isso, evidentemente, se transformou na primeira parte do livro “When China Rules the World: The End of the Western World and the Birth of a New Global Order” .

Desde essas férias, não tive mais o desejo, o apetite de trabalhar no Ocidente. Queria descobrir o que estava acontecendo na Ásia Oriental, não particularmente na China. A China fazia parte, apenas. Mas, na medida em que adentrei, que comecei a trabalhar, percebi que a China – naquela época eu tinha interesse na China antiga – claramente seria a história central. Então, o centro de gravidade do meu pensamento progressivamente se voltou para esse país.

Há uma segunda coisa que me aconteceu naqueles dias: pela primeira vez na vida, me apaixonei à primeira vista. Ela era da Malásia. A minha relação com essa pessoa muito me ensinou sobre as diferenças, sobre a importância das etnias, e assim por diante. Tragicamente, quando vivíamos em Hong Kong havia dois anos e meio, ela faleceu aos 33 anos, num hospital como resultado da discriminação racial. Os chineses de Hong Kong podem ser muito racistas. Acabou sendo uma tragédia horrível. A minha relação com ela me ensinou a ver o mundo de uma maneira muito mais complexa… Foi possível romper com a mentalidade ocidental, com a mentalidade branca a respeito do mundo.?

Tradução: Isaque Gomes Correa