“Até os canalhas envelhecem”. Citando esta frase de Nelson Rodrigues, o ex-ministro da Saúde no governo Lula, José Gomes Temporão, abriu a sua apresentação, em outubro de 2017, quando participou do Seminário Perspectivas de Bem-estar e Envelhecimento Saudável. Organizada pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, onde ele é pesquisador, e pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), em Manguinhos, no Rio de Janeiro, a reunião fez parte da série Futuros do Brasil. Agora, meses depois, é de grande atualidade.

O seminário veio na hora exata. Reforça a possibilidade – e mais: a necessidade urgente – de difundir informações sonegadas pela velha mídia, que significam a devastação das garantias do conceito de cuidado essencial da saúde, da atenção básica e da qualidade de vida da imensa maioria dos idosos brasileiros. Desmonte cada vez mais exposto, a par de outros direitos constitucionais, roubados, a toque de caixa, do cidadão brasileiro.

Antes de ocupar a pasta da Saúde, Temporão, 67 anos, deixou a sua marca na direção do Instituto Nacional do Câncer, o Inca, que sob a sua administração se tornou, na época, hospital de referência nacional. Secretário de Planejamento do Inamps, ele presidiu o Instituto Vital Brazil. Foi o primeiro ministro da Saúde da História do Brasil a licenciar compulsoriamente, dez anos atrás, medicamento patenteado utilizado pelo SUS e distribuído pelo governo federal, usado no coquetel anti-HIV, quando o seu fabricante, o laboratório Merck Sharp e Dohme se recusou a vendê-lo ao governo brasileiro por valor similar ao negociado com países asiáticos.

Defensor ardente da legalização do aborto, na sua visão um caso de saúde pública, o médico sanitarista enfrentou duas grandes crises epidêmicas exploradas inescrupulosamente pela velha mídia. Uma, um suposto surto de febre amarela, mais midiático do que real, e o da dengue no Rio de Janeiro, onde ele mora e trabalha.

Os pontos mais contundentes apontados pelo ex-ministro na Fiocruz são a ameaça iminente praticada pelo atual governo do golpe com o desmonte do tripé SUS, Assistência e Previdência Social; a perversidade e o perigo da proposta que vem sendo gestada de colocação, no mercado, de planos de saúde ‘’baratinhos e bonzinhos’’ para as classes trabalhadoras; a ideia vendida pela velha mídia de que ‘’envelhecer no Brasil é maravilhoso’’: um país onde velhinhos e velhinhas se reúnem de tarde para dançar, jogam baralho, assistem TV e não têm mais relações sexuais.

O assalto à qualidade da assistência de saúde dos mais velhos é uma das consequências mais cruéis e vergonhosas, um dos efeitos covardes do golpe de 2016 investindo contra um segmento vulnerável da população e atingindo mesmo idosos das classes médias que aderiram, no passado, aos planos de seguro de saúde privada hoje cada vez mais inviáveis visto os valores obscenos cobrados.

Nos últimos três anos, três milhões de usuários cancelaram a adesão a esse tipo de seguro e se vêem frente a restrições severas impostas pelas operadoras, no caso dos mais velhos, para conseguir ingressar em planos individuais praticamente inexistentes. Na cartilha do mercado, as normas são incrementar estratégias de comercialização com a opção preferencial de venda de planos de saúde empresariais, e constranger o ingresso do idoso mediante exigência de apresentação de laudos médicos e exames laboratoriais e de realização de entrevistas.

Mas um ponto básico denunciado pelo ex-ministro é a ruptura existente entre a realidade da sobrevivência difícil da maioria dos nossos idosos e idosas e as garantias legais existentes no país, que pretendem protegê-los – como o Estatuto do Idoso.

‘’Na verdade, o atual governo produz, patrocina e suporta medidas que significam sentença de doença, morte e abandono para grande parte dos idosos deste país. O Congresso Nacional, aprovando leis que dão suporte legal a essa barbárie, é cúmplice.’’

Carta Maior transcreveu a importante exposição do ex-ministro Temporão, na Fiocruz, e destaca, abaixo, algumas das suas pertinentes observações.

Primeiro: os obstáculos a vencer

“Até os canalhas envelhecem, sim, mas para chegar lá, num país desigual como o nosso, eles também têm de superar uma série de obstáculos; e a corrupção não é o problema central. O principal é a desigualdade social, o racismo e a injustiça. Primeiro, tem-se que sobreviver à mortalidade infantil até os cinco anos de idade. Passada essa etapa, deve-se sobreviver às doenças da adolescência e ao processo político-social que mata, por homicídio, 50 mil brasileiros por ano. A maioria jovens, negros e pobres. Depois, o processo natural de adoecer, entre os 30 e 50 anos. Mas não se pode ser uma das 50 mil vítimas de óbitos por acidentes de trânsito que, anualmente, afeta a população brasileira. Entre homicídios e acidentes de trânsito, então, temos 100 mil óbitos por ano. Uma tragédia. ’’

‘’E eu não vejo nenhum movimento consequente, sério, de enfrentamento das raízes, da causalidade desse processo. Basta olhar, por exemplo, para o Rio de Janeiro onde se fecha os olhos para o comércio das drogas ditas ilegais e se coloca – uma farsa – a presença do exército cercando as comunidades pobres como se isso fosse resolver alguma coisa. ’’

A velhice dourada

‘’Uma coisa que me incomoda muito, acompanhando as crônicas, o discurso cotidiano de como está ocorrendo o processo de envelhecimento no Brasil, é perceber certa naturalização desse processo. Nas crônicas nos jornalões, na grande mídia e nos programas eleitorais da TV se vê velhinhas simpáticas dançando com outros velhinhos simpáticos, senhoras alegríssimas fazendo excursões e aproveitando esse momento tão importante da vida. Vê-se, às cinco da tarde, as vans paradas nas portas dos teatros de onde quase só saem velhinhas. ’’

‘’Naturaliza-se a velhice no país com a ideia de que é uma maravilha envelhecer no Brasil! Uma farsa. Uma fraude. De que velhice nós estamos falando? De qual envelhecimento? De um idoso pobre, do nordeste, de pessoas submetidas a situações de violência no seu cotidiano desde a infância até essa idade, nos grandes centros urbanos? Estamos falando da velhice da classe média? De qual classe social? Estamos olhando de onde para esse processo natural, biológico, cultural e político? Esta é a questão central. ’’

‘’Há que desfazer uma mitologia construída e que os dados desmentem até os sociólogos e antropólogos famosos que escrevem sobre o assunto que é maravilhoso ser idoso no Brasil. Muito melhor que ser jovem! Delírio. Estamos, afinal, falando da grande maioria da população brasileira submetida à violência cotidiana do estado, da polícia, do tráfico de drogas, das próprias instituições de saúde (violência institucional), do precaríssimo sistema de transporte público, das condições de alimentação. ’’

‘’Não falamos das diferenças de gênero – os homens contam com uma expectativa de vida menor e é mais rápido o seu processo de envelhecimento. E destacamos as doenças sexualmente transmissíveis. Lembro que quando eu estava no Ministério da Saúde a tendência era pensar que os velhinhos e as velhinhas passavam as tardes jogando baralho, fazendo tricô e vendo TV. Na verdade, transavam e muito. Há um dado recente mostrando que a incidência de AIDS entre idosos aumentou 60% entre 2009 e 2015 por causa das relações sem proteção, por causa de uma política de comunicação e informação descontinuada ou interrompida por força da pressão da bancada evangélica e de setores conservadores, o que acabou sendo acatado. ’’

‘’A OMS nos coloca duas questões: como manter a independência, a vida ativa nesse processo de envelhecimento e como implementar políticas de prevenção, promoção e atenção aos idosos. Temos de um lado a realidade, do outro as garantias legais: a Constituição, o Estatuto do Idoso. Mas há uma ruptura entre o processo real e essas garantias legais que não são cumpridas.’’

O Pacto pela vida, em defesa do SUS e de gestão, documento/guia elaborado em 2006, destacou Temporão, ‘’estabelece, por exemplo, na estratégia de ações sobre o tema, a criação da Caderneta de Saúde do Idoso – ela está sendo usada? eu pergunto; se estiver, eu questionaria – e também programas de educação permanente sobre a saúde deles; um manual de atenção básica aos mais velhos, políticas farmacêuticas (as políticas nessa área não dão conta da demanda), e políticas de acolhimento e atenção diferenciada na internação e na atenção familiar.’’

Doenças e custos da saúde dos idosos

A questão dos custos dessas políticas é ‘’outro aspecto muito estudado, muito analisado, ’’diz Temporão. ‘’Maior carga de doenças, maior uso do serviço de saúde. A OMS chama a atenção para o fato de, nas próximas décadas, a incidência das doenças senis, as demências, Alzheimer, depressões, doenças neuropsíquicas, diabetes, hipertensão, deficiências visuais, acidentes vasculares cerebrais, doenças reumatológicas, morbosidade e internações mais prolongadas (leitos ocupados por mais tempo) vão aumentar. E aumentará a carga de uso dos serviços de saúde.’’

O peso dos gastos em medicamentos

‘’A assistência farmacêutica é o problema mais grave da população idosa hoje por causa dos processos das patologias que incidem sobre ela e sobre sua vulnerabilidade. Tanto as políticas de atenção básica como a farmácia popular não dão conta dessas demandas. O peso, no orçamento familiar, da compra de medicamentos para idosos é o fator que mais afeta a economia e as finanças das famílias. ’’

Conceito de cuidado essencial

‘’No confronto do modelo público com o privado, que tem como referência maior o modelo americano (nele, se gasta hoje 20% do PIB em atenção médica), em princípio há o conflito com a visão do trabalho interdisciplinar, transdisciplinar, na atenção da saúde do idoso; o conflito com o conceito de integralidade e cuidado essencial.’’

‘’No impacto negativo das políticas de ajuste que vêm sendo implementadas no Brasil e incidem sobre a saúde, predomina uma análise centrada na assistência médica, mas na verdade o impacto transcende a assistência médica; ele vai recair no que denomino cuidado essencial. Não no sentido técnico; eu me refiro a cuidado como um processo inerente à vida, no sentido ontológico, não sentido técnico, sinônimo de assistência. É o ato de cuidar, de estar junto, de acompanhar, de ouvir. É construir um ambiente facilitador à vida. Não estamos falando de um cuidado burocrático, de ‘’cumprir a norma’’, mas um cuidado desejante que garanta a qualidade de vida. Isto só será possível numa outra forma de sociedade. ’’

Os planos simplificados

‘’Sobre o abandono e a solidão dos idosos não se fala muito,’’ diz ele, ‘’mas isto tem a ver com a capacidade de atendimento do estado e com a fragilização do conceito de seguridade social. ’’

‘’Com este panorama, quando você vê o Ministério da Saúde colocar no mercado, como solução, planos de saúde simplificados para famílias já fragilizadas, que terão de comprar esses planos, ‘’produtos’’ de saúde, um modelo totalmente inadequado, eu diria perverso, para atender as necessidades, as exigências de atenção dos idosos brasileiros; esses planos baratinhos e ‘’bonzinhos’’, eu temo que seja um ensaio, e que propostas estejam sendo gestadas para um aperfeiçoamento mórbido no atendimento das necessidades dos idosos brasileiros. ‘’

O idoso infrator

‘’O idoso ‘’infrator. ’’ A penalização do ‘’idoso infrator’’. O que seria isto? Aquele que adoece, o que sofre, o que precisa de atenção e cuidado. A mensalidade (NR do plano) será tanto mais cara quanto mais você o usa ou tanto quanto a sua saúde seja frágil. É traçado um perfil de risco mensurável de cada idoso, o que poderá levar a preços diferenciados e a preços de seguro mais caros para obesos, diabéticos, hipertensos, todos os idosos, todos aqueles ‘’infratores’’ que não sigam, rigorosamente, os preceitos da medicina institucionalizada. ’’

Virar as costas para ‘’prevenção e atenção básica, é fazer a mudança de uma política que é a porta de entrada para 120 milhões de brasileiros; e ela está sendo ferida de morte por este governo.’’

Abandono terapêutico

‘’Há o fenômeno da medicina pós-moderna: o abandono terapêutico’’, ressalta o ex-titular da pasta da Saúde no governo Lula. ‘’Trata-se do idoso intensivamente cuidado, mas terapeuticamente abandonado. É um ser visto e cuidado por quatro, cinco especialistas, cada um com o seu saber específico. Você chama o médico do quadril, do cérebro, do pulmão, o médico do olho, do fígado. Especialistas que dialogam entre si com dificuldade. Mas não haverá um deles que veja (NR: esse idoso) como um ser integral e que possa cuidá-lo desta perspectiva.’’

‘’O que temos, muitas vezes, nos hospitais brasileiros, é que você não tem ali o clínico geral, o maestro que conduza a terapêutica de modo integrado e articulado. ’’

O SUS ameaçado

‘’O SUS, a Previdência e a Assistência Social – o tripé da seguridade -, estão ameaçados com a reforma iminente que os economistas semi-analfabetos defendem, cotidianamente, tentando nos convencer que a reforma vai ser importante. Quer dizer: este sistema de seguridade social que a Constituição criou com sabedoria, espécie de mecanismo de atenuação dos efeitos da máquina que cria e reproduz sofrimento que é o capitalismo, no contexto do pós-neoliberalismo está ameaçado, neste momento político atual. ’’

‘’A grande mídia tem uma narrativa de que o SUS é muito importante para os pobres. Não construímos o SUS para os pobres; construímos para ele atender a todos.’’

‘’Transplantes de órgãos, por exemplo. Oitenta e cinco por cento, 90% deles, realizados no Brasil, são feitos no SUS independente da classe de renda. E mais: as políticas de vacinas, por exemplo. A vigilância sanitária e epidemiológica. Os medicamentos para doenças crônicas que são garantidos pelo SUS.’’

Falta consciência política de saúde

‘’Vinte e oito a 30% da população brasileira hoje têm plano de seguro de saúde. Não se vê aqui a construção de uma consciência política de saúde. Os meios de comunicação de massa, deliberadamente, desconstroem o que é público e botam no lugar o pretenso virtuosismo do privado. Uma pesquisa, há alguns anos, mostrava que a aspiração da família brasileira mais pobre, no processo de ascensão social, era ter um carro, uma casa e um plano de saúde particular.’’

A epidemia que a velha mídia ignorou

‘’Em 2007/2008 tivemos alguns casos de macacos que começaram a morrer de febre amarela, em Brasília, e tínhamos alguns casos de pessoas humanas. A Eliane Cantanhêde publicou uma coluna obscena pedindo que as pessoas corressem para os postos de saúde para se vacinarem porque havia uma epidemia. Ela foi a responsável por uma epidemia farsesca, uma epidemia que nunca existiu. Algumas pessoas morreram por efeitos colaterais da vacina. Passa o tempo. 2016, aqui, no Brasil, governo golpista. Nós tivemos uma epidemia de febre amarela. Não saiu nada na imprensa. Por quê? ’’

‘’Naquele momento era governo Lula. Então, poucos casos que não chegavam a mais de uma dezena, configuraram uma epidemia e morreram centenas de pessoas no Brasil. Não aconteceu nada. Então, o problema é não termos uma prática de controle dos meios de comunicação de massa, uma lei que impeça que cinco famílias brasileiras controlem toda a mídia brasileira – jornal, rádio, TV, internet.’’

Para envelhecer com dignidade

‘’Na verdade, o atual governo produz, patrocina e suporta medidas que significam sentença de doença, morte e abandono de grande parte dos idosos deste país. O Congresso Nacional, aprovando leis que dão suporte a essa barbárie, é cúmplice. ’’

‘’A garantia de um processo de envelhecimento com menos riscos, menos sofrimento e mais dignidade, e centrado no conceito de cuidado essencial, depende, basicamente, da consolidação do SUS e de uma Previdência Social, ’’ conclui o ex-ministro da Saúde. E cita o poeta e compositor português José Afonso, autor de Grândola, Vila Morena, a música – senha do Movimento das Forças Armadas no golpe de 25 de Abril de 1974, em Portugal:

Se no começo da sua fala o ex-ministro lembrou Nelson Rodrigues, terminando a apresentação citou o poeta e compositor português José Afonso: “A velhice não se enjeita como o lixo da calçada. Um país que os velhos rejeita não é país, não é nada.’’