Por outro lado, a burguesia passou a ter “a percepção de que todas as armas por ela forjada contra o feudalismo se voltavam agora contra ela mesmo. (…) O burguês privado só pode continuar a explorar outras classes e gozar pacificamente da propriedade (…) e da ordem com a condição de a sua classe ser condenada com as outras classes à mesma nulidade política.”, referindo-se a ascensão do bonapartismo.

O laboratório francês

A França foi para Karl Marx um laboratório privilegiado de seus estudos sobre a história da formação do capitalismo. O seu amigo Engels explicaria a razão desse interesse: “A França é o país em que as lutas históricas de classes sempre foram levadas mais do que em nenhum outro lugar ao seu termo decisivo, e onde, portanto, as formas políticas mutáveis, dentro das quais se movem estas lutas de classes e nas quais se assumem os seus resultados, adquirem os contornos mais acusados. Centro do feudalismo na Idade Média e país modelo da monarquia unitária de Estados [ou ordens sociais — standische], desde o Renascimento a França demoliu o feudalismo na grande Revolução e fundou a dominação pura da burguesia sob uma forma clássica como nenhum outro país da Europa. Também a luta do proletariado cada vez mais vigoroso contra a burguesia dominante reveste aqui uma forma aguda, desconhecida noutras partes. Esta foi a razão por que Marx não só estudava com especial predileção a história passada francesa, mas também seguia em todos os seus pormenores a história em curso, reunindo os materiais para os empregar posteriormente, e portanto nunca se via surpreendido pelos acontecimentos” (Marx, 1982: 17-18).

Quando, em 2 de dezembro de 1851, o presidente Louis Bonaparte deu o golpe de Estado na França, que abriria caminho para a instauração do II Império, a maioria das pessoas foi pega de surpresa. Aquilo lhes parecia, como diria Marx, um “raio em céu sereno”. A partir daí as tentativas de explicação daquele evento, aparentemente inusitado, se multiplicaram. Entre as obras que tiveram maior repercussão naquele período estavam: Napoleão: o pequeno, de Victor Hugo e Golpe de Estado, de Proudhon. Duas figuras com grande expressão na cultura francesa.

 

Golpe de 18 de Brumário (Foto: arquivo)

Enquanto isso acontecia, do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, o socialista Joseph Weydemeyer trabalhava na criação de um jornal semanal de caráter democrático. Justamente por essa razão, pediu a seu amigo Karl Marx que lhe enviasse uma série de artigos tratando do golpe de Estado que abalara a França. A tarefa foi aceita e cumprida com êxito. Até meados de fevereiro de 1852, Marx lhe enviou vários artigos sobre o assunto proposto.

Contudo, o projeto de Weydemeyer não se realizou exatamente como pretendido. No lugar de um jornal semanal acabou sendo lançada uma revista mensal com o título Die Revolution (A revolução). Foi ali, logo no primeiro número, que saíram os textos de Marx, organizados sob o título de O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. O nome era uma referência ao golpe de Estado dado por Napoleão Bonaparte em 9 de novembro de 1799 — que no antigo calendário implantado pela Revolução Francesa era 18 do mês de Brumário.

Alguns anos depois — no Prefácio à segunda edição publicada em 1869 —, Marx compararia a originalidade de seu trabalho em relação aos realizados pelos dois autores citados anteriormente. Para Victor Hugo, o golpe napoleônico não havia sido nada mais que “um ato de força de um só indivíduo”. Não se dando conta de que com isso apenas engrandecia “este indivíduo em vez de diminuí-lo”, pois lhe atribuía “um poder pessoal de iniciativa sem paralelo na história universal”. Por outro lado, para Proudhon, “a construção histórica do golpe de Estado transforma-se numa apologia histórica do herói do golpe de Estado”.

Marx, ao contrário desses dois pensadores e de toda a historiografia liberal, tenta demonstrar que a luta de classes é que “criou na França as circunstâncias e as condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco representar o papel de herói” (Marx, 1982:12). Tendo por base os artigos de As lutas de classes na França, publicados na Nova Gazeta Renana, fez o balanço do processo revolucionário e contrarrevolucionário ocorrido naquele país desde fevereiro de 1848.

Tratamos neste artigo apenas dos anos que sucederam ao massacre do levante dos operários parisienses em junho de 1848. O período que antecedeu esse importante acontecimento já abordamos num artigo anterior. Mas, para entendermos o golpe de Estado de Louis Bonaparte precisamos ter em conta a história toda — é justamente nisso que o método de Marx se diferencia dos demais.

Ascensão dos republicanos burgueses

Sob as cinzas das barricadas de junho, ergueu-se o domínio exclusivo dos chamados republicanos burgueses, também conhecidos como tricolores. A quem representavam esses republicanos? Segundo, Marx, “não representavam nenhuma grande fração da sua classe assentada em bases econômicas. Possuíam apenas o significado e o título histórico de terem feito valer, sob a monarquia (…), o regime geral da classe burguesa, o império anônimo da República, que idealizavam e adornavam com arabescos antigos, mas onde saudavam, acima de tudo, a dominação da sua camarilha”. Ou seja, eles eram os frágeis e instáveis representantes das frações burguesas que ascenderam em fevereiro de 1848.

No lugar da Comissão Executiva foi estabelecida uma ditadura constitucional provisória comandada pelo general republicano Louis Eugéne Cavaignac. Esses senhores se apossaram de todos “os ministérios, das chefaturas de polícia, da direção do correio, das prefeituras, dos postos elevados do exército (…). O seu redator en chef, Marrast, passou a ser o presidente permanente da Assembleia Nacional Constituinte” (MARX, 1984:66).

Os socialistas reformistas, como Louis Blanc, já haviam sido excluídos do governo antes mesmo do levante operário. Todas as veleidades de uma República Social, anunciadas nas barricadas de fevereiro, estavam sendo sepultadas pela burguesia. Mas, não foi somente o proletariado que perdeu diante desse jogo bruto.

“Com a quebra do poder revolucionário dos operários, afirmou Marx, quebrou-se ao mesmo tempo a influência política dos republicanos democráticos, isto é dos republicanos no sentido da pequena burguesia, representados na Comissão Executiva por Ledru-Rollin, na Assembleia Nacional Constituinte pelo partido da Montagne e na imprensa pelo Reforme. Em 16 de abril tinham conspirado juntamente com os republicanos burgueses contra o proletariado e nas jornadas de junho tinham-no combatido juntamente com eles”. Contudo, “a pequena burguesia só pode se afirmar revolucionariamente contra a burguesia quando o proletariado está por detrás dela” (MARX, 1984:65-66).

Por isso, com a derrota de junho, os republicanos pequeno-burgueses puderam ser, facilmente, escorraçados de seus cargos pelos seus amigos de ontem. “Desprezados e rejeitados como aliados”, escreveu Marx, “desceram ao nível de satélites secundários dos tricolores aos quais não podiam arrancar qualquer concessão, mas cuja dominação tinham de apoiar todas as vezes que esta, e com ela a República, parecesse posta em questão pelas frações burguesas antirrepublicanas.” (MARX, 1984). A sua base social — a massa de pequeno-burgueses citadinos — também se deu conta de que, “ao derrotar os operários, tinha se entregue sem resistência nas mãos de seus credores. A sua bancarrota, que desde fevereiro se arrastava cronicamente e parecia ignorada, manifestou-se claramente depois de junho”. No parlamento burguês, “o entendimento amistoso entre credor e devedor foi rejeitado nos seus pontos essenciais” (MARX, 1984:69-70).

Assim, os deputados burgueses, sem a pressão operária e pequeno-burguesa, puderam tranquilamente elaborar a constituição da sua República, que não se confundia com a República Social e muito menos com a República do Trabalho, anunciadas diversas vezes pelo povo parisiense nas ruas e nas barricadas. A lei que limitava o tempo de trabalho a 10 horas foi revogada e a prisão por dívidas, restabelecida. E esta era uma espada pendendo sob a cabeça dos trabalhadores e pequenos proprietários, sempre endividados com agiotas.

No primeiro projeto de Constituição, elaborado antes de junho e sob vigilância dos operários armados, ainda se falava em “direito ao trabalho”. Como disse Marx, esta teria sido “a primeira fórmula canhestra em que se condensavam as exigências revolucionárias do proletariado”, pois, “no sentido burguês, o direito ao trabalho é um contrassenso, um desejo piedoso, mas por detrás do direito ao trabalho está o poder sobre o capital, por detrás do poder sobre o capital a apropriação dos meios de produção, a sua submissão à classe operária associada, portanto, à abolição do trabalho assalariado, do capital e da sua relação recíproca. Por detrás do ‘direito ao trabalho’ encontrava-se a insurreição de junho. A Assembleia Constituinte, que pusera efetivamente o proletariado revolucionário ‘hors la loi’, fora da lei, tinha que rejeitar, por princípio, a sua fórmula da Constituição, da lei das leis; tinha de lançar o seu anátema sobre o ‘direito ao trabalho’” (MARX, 1984:74). No seu lugar, os republicanos burgueses, como bons samaritanos, estamparam o “direito à assistência pública”. A filantropia foi o máximo de consciência social que atingira esses burgueses.

Outro feito desses republicanos foi a rejeição do artigo que estabelecia o imposto progressivo sobre a riqueza e a renda. Acreditavam, assim, estarem salvando o sagrado direito à propriedade das artimanhas dos comunistas. Ao fazerem isso, na verdade, estavam exorcizando o seu próprio passado, pois o imposto progressivo foi adotado na França revolucionária sob o comando de Maximilien Robespierre, o incorruptível. Este “ditador sanguinário” também havia dado ao país o sufrágio universal. A contrarrevolução liberal-conservadora, que se seguiu à sua destituição e execução, pôs um fim a essas duas medidas de caráter democrático.

Ridicularizou Marx: “o imposto progressivo não é apenas uma medida burguesa, realizável em maior ou menor grau dentro das relações de produção existentes; era o único meio de amarrar as camadas médias da sociedade burguesa à República ‘honesta’, de reduzir a dívida do Estado, de dar cheque à maioria antirrepublicana da burguesia. Por ocasião dos concordais à l’amiable, os republicanos tricolores tinham sacrificado a pequena burguesia à grande. Por meio da proibição legal do imposto progressivo elevaram este fato isolado a um princípio” (MARX, 1984:74). A responsabilidade maior pela sustentação financeira da pesada máquina estatal burguesa continuaria nas costas da pequena-burguesia e dos trabalhadores.

 

Capa da 2ª Edição (Foto: arquivo)

No seu o 18 de Brumário de Louis Bonaparte Marx fez uma apresentação primorosa da essência da Constituição republicano-burguesa, aprovada em 21 de novembro de 1848. Uma análise que, por sinal, serve para compreendermos todas as demais Constituições liberal-burguesas. “O inevitável Estado-Maior das liberdades de 1848 — a liberdade pessoal, de imprensa, de palavra, de associação, de reunião, de ensino, de culto etc. — recebeu um uniforme constitucional que as tornava invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades foi proclamada como direito incondicional do cidadão francês, mas com comentário adicional de que essas liberdades são ilimitadas na medida em que não são limitadas pelos ‘direitos iguais de outros e pela segurança pública’ ou por ‘leis’ que precisamente devem mediar essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública (…). Portanto, a Constituição remete constantemente a futuras leis orgânicas que devem precisar aquelas reservas e regulamentar desse modo o uso daquelas liberdades ilimitadas de modo que não se choquem entre si, nem com a segurança pública” (MARX, 1982:35-36).

A Constituinte de 1848 criou uma espécie de poder dual, com duas cabeças: o parlamento e a presidência da República eleitos por sufrágio universal. “De um lado, estão 750 representantes do povo (…); que constituem uma Assembleia Nacional incontrolável, indissolúvel, indivisível, uma Assembleia Nacional que goza de onipotência legislativa, que decide em última instância acerca da guerra, de paz e dos tratados comerciais, a única que tem o direito de anistia e com a sua permanência ocupa constantemente o primeiro plano da cena. De outro lado, o presidente, com todos os atributos do poder régio, com a faculdade de nomear e demitir os seus ministros independentemente da Assembleia Nacional, com todos os meios do Poder Executivo nas suas mãos, sendo ele que distribui todos os lugares e quem, portanto, decide na França da sorte de mais de um milhão e meio de existências, que dependem dos 500 mil funcionários e oficiais de todos os graus. Tem sob o seu comando todo o poder armado” (MARX, 1982:38-39). O que aconteceria quando os interesses de classe, expressos nesses dois poderes, se chocassem?

Os republicanos burgueses — avalistas da Constituição — não tinham dúvida da sua vitória na eleição presidencial de 10 de dezembro de 1848, consolidando o seu poder político e social. Afinal, seus principais inimigos, o proletariado e a pequena burguesia democrática, haviam sido colocados fora de combate. O candidato dos republicanos tricolores era o general Cavaignac, o carrasco das revoltas dos “selvagens” argelinos e dos “bárbaros” operários parisienses: portanto, o salvador da boa sociedade. Havia mais três candidatos: Ledru-Rollin, representando os democratas pequeno-burgueses; François Raspail, porta-voz do proletariado; e Louis Bonaparte, cujo maior título foi ser sobrinho do imperador morto. Em relação à candidatura de Raspail, afirmou Marx, foi “o primeiro ato através do qual o proletariado, como partido político autônomo, se separou do partido democrático”.

Como cláusula de segurança, a maioria parlamentar republicano-burguesa estabeleceu que se nenhum dos candidatos ultrapassasse os dois milhões de votos a decisão passaria para a Assembleia Nacional. Nada poderia dar errado, mas deu. O general Cavaignac conseguiu apenas um milhão de eleitores e, surpreendentemente, Louis Napoleão obteve a espantosa cifra de seis milhões. Os candidatos dos operários e dos democratas pequeno-burgueses tiveram uma pequena votação, demonstrando que ainda não haviam se recuperado da grave derrota sofrida meses antes. Como explicar esse resultado, aparentemente, irracional? O que estava por trás da vitória de um ser tão desprezível quanto Louis Napoleão? As forças políticas estavam atônitas.

O fim do reino dos republicanos burgueses

Marx procurou fornecer uma resposta, baseada na conformação de classes francesa: “O 10 de dezembro de 1848 foi o dia da insurreição dos camponeses (…). Napoleão era o único homem que representara, exaustivamente, os interesses e a fantasia da classe camponesa recém-criada em 1789 (…). Para os camponeses, Napoleão não era uma pessoa, mas um programa. Com bandeiras, ao som de música, dirigiam-se aos postos eleitorais gritando: plus d’impôts, a bas les riches, à bas la republique, vive l’Empereur. Fora com os impostos, abaixo os ricos, abaixo a república, viva o Imperador! Por detrás do imperador escondia-se a guerra dos camponeses. A República que eles derrubavam com os votos era a República dos ricos”. Para eles, era a República que os enchia de impostos. E camponês quando pensava no diabo era sob a forma de coletor de imposto. Continuou Marx: “As restantes classes contribuíram para completar a vitória eleitoral dos camponeses. A eleição de Napoleão significava para o proletariado a destituição de Cavaignac, (…) a cassação da vitória de junho. Para a pequena burguesia, Napoleão era a dominação do devedor sobre o credor. Para a maioria da grande burguesia, a eleição de Napoleão era a rotura aberta com a fração de que, durante um momento, teve de se servir contra a revolução, mas que se lhe tornou insuportável logo que procurou consolidar esta posição momentânea como posição constitucional. Napoleão em vez de Cavaignac era, para ela, a monarquia em vez da República, o princípio da restauração realista (…). Finalmente, o exército votava por Napoleão contra a Guarda Móvel, contra o idílio da paz, pela guerra”. E conclui: “Todavia, por muito diferente que fosse o sentido do nome Napoleão na boca das diferentes classes, cada uma delas escrevia com este nome no seu boletim de voto: abaixo o partido do National, abaixo Cavaignac, abaixo a Constituinte, abaixo a República burguesa (…). Napoleão era o nome coletivo de todos os partidos coligados contra a República burguesa” (Marx, 1984:76-77).

Os constituintes já haviam decidido manterem-se reunidos até a aprovação das leis complementares, que sabiam ser os braços e as pernas da Constituição recém-aprovada. Não podiam deixar essa tarefa para os representantes de outros setores sociais. Começaria assim a guerra surda entre os poderes Executivo e Legislativo, e entre os republicanos tricolores e o Partido da Ordem.

Bonaparte formou imediatamente um ministério assentado no Partido da Ordem e tendo à frente Odilon Barrot. O que era o Partido da Ordem? “O partido da ordem constituiu-se imediatamente a seguir às jornadas de junho. Porém, só depois do ‘10 de dezembro’ lhe ter permitido livrar-se da camarilha do National, dos republicanos burgueses, se revelou o segredo da sua existência: a coligação dos orleanistas e legitimistas num mesmo partido. A classe burguesa cindia-se em duas grandes frações que alternadamente —o a grande propriedade fundiária sob a monarquia restaurada, a aristocracia financeira e a burguesia industrial sob a monarquia de Julho —o tinham mantido o monopólio da dominação. Bourbon era o nome régio da influência preponderante dos interesses de uma das frações; Orléans, o nome régio da influência preponderante dos interesses da outra fração” (MARX, 1984:93).

Uma das primeiras medidas do novo grupo no poder foi apresentar uma proposta pedindo o encerramento dos trabalhos da Assembleia Constituinte, tendo em vista o novo quadro que se abrira com a ampla vitória eleitoral de Louis Bonaparte. Segundo ele, “a dissolução era necessária para restabelecer o crédito, para consolidar a ordem, para pôr fim àquela indeterminação provisória e criar um estado de coisas definitiva” (MARX, 1982:44). Petições neste sentido vieram de todas as províncias, mostrando o isolamento dos republicanos burgueses e a ascensão dos seus rivais monarquistas do Partido da Ordem.

Em 29 de janeiro de 1849, quando a Assembleia Constituinte deveria discutir a proposta de dissolução ou não, a sede onde se reuniria foi cercada por tropas do exército. Os representantes do Partido da Ordem deram um ultimatum aos republicanos, que cederam sem grandes resistências e fecharam a Constituinte. Este foi um golpe dos monarquistas coligados a serviço de Bonaparte. Mais tarde, os primeiros sentiriam o mesmo sabor amargo em suas bocas. Começavam os preparativos para um novo 18 de Brumário.

Partido da Ordem vs. Louis Napoleão

Marx não era um historiador liberal, que tomava as aparências dos fenômenos sociais por sua essência. Por isso, afirmou: “Antes de prosseguirmos com a história parlamentar, são indispensáveis algumas observações, para evitar erros correntes acerca do caráter global da época que nos ocupa. Segundo a maneira de ver dos democratas, aquilo do que se trata durante o período da Assembleia Legislativa como durante o período da Constituinte é a simples luta entre republicanos e monarquistas (…). No entanto, examinando mais de perto a situação e os partidos, esfumaça esta aparência superficial que encobre a luta de classes e a peculiar fisionomia desse período”.

 

Comunardos derrubam a Coluna de Vendôme, em homenatem as vitórias de Napoleão I (Foto: arquivo)

Em outras palavras: era preciso ver o que, de fato, estava por detrás dos invólucros republicano e monarquista e, também, das diversas casas dinásticas. “Os legitimistas e os orleanistas formavam as duas grandes frações do partido da ordem. O que ligava estas frações aos seus pretendentes e mutuamente as separava seriam apenas as flores-de-lis e a bandeira tricolor, a Casa dos Bourbon e a Casa de Orléans, diferentes matizes do realismo? Sob os Bourbon governara a grande propriedade territorial, com seus padres e seus lacaios; sob os Orléans, a alta finança, a grande indústria, o grande comércio, isto é o capital, com todo o seu séquito de advogados, professores e bem-falantes. A realeza legítima era simplesmente a expressão política da dominação herdada dos senhores de terra, do mesmo modo que a monarquia de julho era apenas a expressão política da dominação usurpada dos arrivistas burgueses. O que, portanto, separava estas frações não era nenhum dos pretensos princípios, eram as suas condições materiais de vida, duas espécies diferentes de propriedade, era a velha oposição entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e a propriedade fundiária” (MARX, 1982:51-52).

Continua Marx: “Se os orleanistas e os legitimistas (…) procuravam convencer-se a si próprios e convencer os outros de que o que os separava era sua lealdade às suas casas reais, os fatos demonstraram mais tarde que eram mais os seus interesses contrapostos que impediam a união das duas casas reais. E assim como na vida privada se distingue entre aquilo que um homem pensa e diz de si próprio e aquilo que realmente é, e faz, nas lutas históricas há que distinguir ainda mais entre as frases e o que os partidos imaginam e os seus interesses efetivos, entre a representação que têm de si e a realidade. Orleanistas e legitimistas encontraram-se na República uns juntos com os outros e com idênticas pretensões. Se cada parte queria impor à outra a restauração de sua própria casa real, isto apenas significava uma coisa: que cada um dos dois grandes interesses em que se divide a burguesia — a propriedade fundiária e o capital — aspirava restaurar sua própria supremacia e a subordinação do outro” (MARX, 1982:51-52).

Estranhamente, essas duas frações de classes — que se vestiam com roupas de duas dinastias distintas e em conflito — só poderiam manter o seu poder através da República, com a qual antipatizavam. “A República parlamentar era algo mais do que o terreno neutro onde podiam coabitar uma ao lado da outra com direitos iguais as duas frações da burguesia francesa, os legitimistas e os orleanistas, a grande propriedade fundiária e a indústria. Era a condição inevitável para sua dominação comum, a única forma de Estado em que o seu interesse geral de classe podia submeter simultaneamente as pretensões de suas diferentes frações e as de todas as outras classes da sociedade” (MARX, 1982:100).

Os monarquistas mais ingênuos não se cansavam de apresentar anualmente moções pedindo respeitosamente a revogação do exílio das famílias reais depostas em 1830 e 1848. E o parlamento, majoritariamente realista (nos dois sentidos), simplesmente desconsiderava tais pedidos e mantinha seus amados monarcas bem longe do território da República francesa. Isso mostra que os seus interesses de classe eram mais fortes do que as insígnias dinásticas que ostentavam em seus uniformes de gala.

A revolução, contudo, não havia se esgotado completamente e ainda continuava dando susto nas classes dominantes. A partir de fevereiro de 1849 foi se constituindo uma coligação entre os operários e pequeno-burgueses, que se chamaria socialdemocracia. Coligação que também seria conhecida como Montanha, referência à ala democrático-radical da Revolução Francesa. Essas duas forças sociais construíram um programa democrático e lançaram candidatos comuns. O acordo foi selado com inúmeros banquetes populares, que era a única forma permitida de manifestação pública. É preciso não confundir esse partido socialdemocrata com o seu homônimo socialista, nascido sob inspiração de Marx e Engels na segunda metade do século 19.

Nas eleições de maio, a socialdemocracia obteve uma grande vitória política elegendo 200 deputados para a Assembleia Legislativa Nacional. Os republicanos tricolores — abandonados por sua classe — elegeram apenas 50 parlamentares. Os quinhentos deputados restantes eram do Partido da Ordem. Outro fato marcante, que assustou as classes dominantes, foi que os socialdemocratas haviam conquistado eleitores entre a população rural e contavam com quase todos os deputados eleitos por Paris. Até o Exército — baluarte da ordem — sufragou três suboficiais de tendência democrática. Ledru-Rollin, chefe da socialdemocracia — elegeu-se por cinco departamentos. Sinal de que ainda havia brasa sob as cinzas.

O Partido da Ordem passou a utilizar contra os democratas pequeno-burgueses — vanguarda da socialdemocracia — o mesmo estratagema empregado pelos republicanos burgueses contra os operários parisienses em junho de 1848. Tentou provocá-los e conduzi-los a uma luta desigual a fim de esmagá-los. Escreveu Marx: “A força do partido proletário estava nas ruas, e a dos pequeno-burgueses na própria Assembleia Nacional. Tratava-se, pois, de os tirar da Assembleia Nacional para as ruas e fazer com que eles próprios destroçassem a sua força parlamentar antes que tivessem tempo e ocasião para a consolidar” (MARX, 1982:56).

A provocação começou em junho, quando o general Oudinot, sob ordens de Bonaparte, bombardeou Roma, expulsou os republicanos de Mazzini e abriu o caminho para a volta do reacionário Papa Pio IX, que havia sido expulso pela Revolução e se refugiado no reino de Nápoles. A Constituição francesa afirmava que a República “não empreenderá guerra de conquistas e jamais usará suas forças contra a liberdade de outro povo”. E as decisões sobre o uso de forças militares no exterior deveriam passar necessariamente pela aprovação do parlamento. Diante disso, o líder da oposição Ledru-Rollin apresentou um projeto de impeachment contra o presidente e seus ministros. Como era esperado, a ampla maioria dos deputados votou contra a proposta.

Uma ala mais radical da socialdemocracia declarou Bonaparte “fora da Constituição” e ameaçou com o uso das armas para defendê-la, coisa que não pretendia e nem tinha condição de fazer. No dia 13 de junho realizou-se uma grande manifestação dos setores democráticos da Guarda Nacional desarmados, ao qual se uniram dezenas de milhares de pessoas. Clamavam pelo respeito à Constituição e à República. Contudo, a multidão foi obrigada a se dispersar ao se ver diante de si as tropas do exército fortemente armadas, lideradas pelo general Changarnier. Este era o herói do Partido da Ordem, como o general Cavaignac o fora para os republicanos burgueses.

O estado de sítio foi novamente declarado na cidade de Paris. Iniciou-se a caçada aos líderes socialdemocratas. Alguns tiveram que deixar o país e outros acabaram sendo processados e presos. As guarnições da Guarda Nacional ligadas a essa corrente política foram dissolvidas. O próprio parlamento caiu sob um rigoroso controle. Tudo o que fora acumulado pelos democratas pequeno-burgueses nas eleições escorreu pelos vãos dos dedos e eles tiveram que sair de cena.

Cai o Partido da Ordem

A maioria parlamentar do Partido da Ordem — como o fizera os republicanos burgueses — não se deu conta de que “ao entregar numerosos deputados, sem mais cerimônias, à requisição dos tribunais, suprimia a sua própria imunidade parlamentar. O regulamento humilhante que impôs a Montagne  (refere-se ao partido socialdemocrata) elevava o presidente da República na mesma medida em que rebaixava cada um dos representantes do povo. Ao estigmatizar, como anarquista, como destinada a subverter a sociedade, uma insurreição em defesa do regime constitucional, a burguesia proibia a si própria o apelo à insurreição quando o poder executivo violasse contra ela a Constituição” (MARX, 1982:60). Assim, ia cavando sua própria sepultura.

Alguns meses depois — em 1º de novembro —, o presidente demitiu o ministério Barrot, afinado com o Partido da Ordem. Bonaparte soube usar bem os seus serviços para realizar as tarefas sujas de pôr fim à Assembleia Constituinte, bombardear Roma e esmagar o partido socialdemocrata. A destituição do ministério era o sinal de que a guerra estava recomeçando no andar de cima. E isso acontecia cada vez que os do andar de baixo tinham sido calados.

O Partido da Ordem agora estava fora do governo, sem os privilégios e prerrogativas dos postos executivos. Toda máquina estava nas mãos exclusivas de um presidente que sonhava com a coroa e o manto imperiais.

Em todos esses anos tanto os burgueses republicanos quanto as correntes monarquistas tiveram um discurso monocórdico em defesa da ordem e contra a anarquia vermelha. Acenando com o fantasma do comunismo, procuraram manter a burguesia, a aristocracia rural e a classe média sob rédeas curtas. Agora, era a vez de Bonaparte esgrimir com os mesmos argumentos contra seus ex-aliados conservadores.

Escreveu Marx: “Quer se tratasse do direito de petição ou do imposto sobre o vinho, da liberdade de imprensa ou da liberdade de comércio, de clubes ou da Carta municipal, da proteção da liberdade individual ou da regulamentação do orçamento do Estado, a senha se repete constantemente, o tema permanece sempre o mesmo, o veredito está sempre pronto e reza invariavelmente: socialismo. Até o liberalismo burguês é declarado socialista, o desenvolvimento cultural da burguesia é socialista, a reforma financeira burguesa é socialista. Era socialismo construir uma ferrovia onde já existisse um canal, e era socialismo defender-se com um porrete quando se era atacado com um florete”.

“A burguesia tinha a percepção correta de que todas as armas por ela forjada contra o feudalismo se voltavam contra ela mesmo, que todos os meios de cultura criado por ela se rebelavam contra sua própria civilização, que todos os deuses que tinha criado a abandonavam. Compreendia que todas as chamadas liberdades civis e órgãos de progresso atacavam e ameaçavam, ao mesmo tempo, na base social e no vértice político, a sua dominação de classe e, portanto, tinham se convertido em ‘socialistas’ (…) Portanto, quando a burguesia excomunga como ‘socialista’ o que antes exaltava como ‘liberal’ confessa que seu próprio interesse lhe ordena que evite os perigos do seu autogoverno; que para impor a tranquilidade no país, tem que impô-la, em primeiro lugar, ao seu parlamento burguês; que para manter intacto o seu poder social tem que enfraquecer o seu poder político; que o burguês privado só pode continuar a explorar outras classes e gozar pacificamente da propriedade, da família, da religião e da ordem com a condição de a sua classe ser condenada com as outras classes à mesma nulidade política; que para salvar a bolsa há que renunciar à coroa” (MARX, 1982:70-71).

Enquanto iniciava a peleja entre Louis Bonaparte e o Partido da Ordem, um acontecimento deu-lhes um susto e voltou a unir, momentaneamente, os contendores. Nas eleições de 10 de março — convocadas para preencher as vagas dos deputados cassados —, dos 21 cargos em disputa, 11 foram preenchidos pelos socialdemocratas. Em Paris as três cadeiras em jogo ficaram nas mãos dos “vermelhos”. Entre os eleitos estava um dos insurgentes de junho, Paul Deflotte. O cadáver teimava em se levantar do caixão para assustar as pessoas de bem. Era preciso pôr um fim definitivo nisso.

Novamente, a burguesia coligada preparou um golpe branco. Em 31 de maio, o parlamento aprovou nova lei eleitoral estabelecendo uma taxa a ser paga pelo eleitor e proibindo que votassem aqueles que algum dia tivessem sido processados pela justiça francesa ou que residissem a menos de três anos na mesma circunscrição eleitoral. O patrão forneceria o atestado que provava o tempo de domicílio e a polícia o atestado de bons antecedentes. Na prática, essas medidas representavam o fim do sufrágio universal, pois numa só penada excluiu do direito ao voto cerca de três milhões de pessoas, a quase totalidade representada pelos trabalhadores pobres. “A lei eleitoral de 31 de maio de 1850 o excluiu (o proletariado) de qualquer participação no poder político. Isolou-o da própria arena. Atirou novamente os operários à condição de párias que haviam ocupado antes da Revolução de Fevereiro”, disse Marx. A socialdemocracia perdia assim uma grande parte do seu eleitorado e os políticos burgueses o pouco de respeito que ainda tinham junto ao povo.

O Partido da Ordem, para retomar a rédea do poder, agora depositava todas as suas esperanças na letra da Constituição, que impedia a reeleição do presidente e ainda mantinha a necessidade de qualquer dos candidatos ter mais de 2 milhões de votos. Se o quórum não fosse atingido, a decisão cairia nas mãos do parlamento; ou seja, nas mãos do Partido da Ordem. A situação, aparentemente, se tornou mais favorável com a redução drástica do número de eleitores. Diante disso, a questão da reforma da Constituição passaria a ser uma questão de vida ou morte para Louis Bonaparte.

Os socialdemocratas, os republicanos burgueses e parte do Partido da Ordem, por motivos diferentes, eram contra a revisão da Constituição. E para aprová-la era preciso do voto de pelo menos 3/4 dos deputados. Algo quase impossível naquele momento. Se nada de novo ocorresse, os dias do presidente estavam contados.

A caminho do golpe de Estado

Um dos derradeiros lances da guerra entre o Executivo e o Legislativo foi a destituição do ministro da Guerra Chagarnier — que se constituía num último obstáculo aos planos golpistas no interior do governo. A partir de então, o presidente dispunha de todo poder militar do qual necessitava para rasgar a Constituição, aplastar o Partido da Ordem e manter-se no poder.

O novo ministério indicado por Bonaparte foi recebido com um voto de censura do parlamento em 18 de janeiro. Toda oposição coligada (republicanos burgueses, legitimistas, orleanistas e socialdemocratas) conseguiu 415 votos contra 286 — a maioria destes era composta por desertores do Partido da Ordem, que começava a se desfazer. Os conservadores, temendo a radicalização política e social, preferiam se submeter ao novo Napoleão a correr o risco de ver um conflito institucional instalado e sobre o qual não poderiam prever os resultados.

Na linha do confronto, os deputados oposicionistas se recusaram a aprovar uma dotação de 1 milhão e 800 mil francos para o chefe do Executivo. Sabiam que esse dinheiro serviria para “comprar apoio” junto a políticos e militares. E também financiaria grupos de provocadores bonapartistas que se escondiam sob o manto da Sociedade 10 de dezembro. A vitória, desta vez, foi bastante apertada, por apenas 102 votos de diferença. Esfumaçava-se a bancada do Partido da Ordem, que havia eleito 500 deputados. Apenas os socialdemocratas se mantinham intactos com seus quase 200 deputados.

Apesar dessa situação, os poucos deputados que ainda se mantinham no Partido da Ordem se recusaram a votar favoravelmente à proposta concedendo anistia aos condenados políticos, apresentada pelos socialdemocratas. Desabafou Marx: “bastou que um simples Vaisse conjurasse o fantasma vermelho para que o partido da ordem rejeitasse sem discussão uma moção que teria certamente dado imensa popularidade à Assembleia Nacional e forçado Bonaparte a atirar-se novamente em seus braços. Em vez de se deixar intimidar pelo Poder Executivo com a perspectiva de novos distúrbios, devia ter dado à luta de classes uma pequena oportunidade, a fim de manter o Poder Executivo na dependência. Não se sentiu, porém, capaz de brincar com fogo”.

Bonaparte aproveitava a confusão e jogava com os diversos interesses, quer do Partido Republicano quer das correntes dinásticas do Partido da Ordem. Ao mesmo tempo, alarmava a burguesia com os perigos da anarquia que ameaçariam o bom andamento dos negócios. Uma crise econômica que se avizinhava no horizonte, reforçava esse temor que logo se transformaria em pânico.

Da pauta política ainda constava o problema da reforma da Constituição. Este era um fator de instabilidade política, justamente algo que a burguesia não queria.

Em 19 de julho a reforma foi rejeitada, embora tivesse conseguido 446 votos contra 278. Apenas os socialdemocratas, os republicanos burgueses e uma reduzidíssima parte do Partido da Ordem votaram contra. A maioria parlamentar ficou temerosa diante da possibilidade do uso da força por parte de Bonaparte ou de acidentalmente acender o estopim de uma revolução. Contra sua vontade, um novo e explosivo impasse foi criado: a letra da Constituição republicana, que previa um quórum para sua alteração, vencera a maioria da Assembleia Nacional e o presidente. A Nação se viu diante de um dilema: golpe bonapartista ou revolução!

Ao indicar o banqueiro Achille Fould para o poderoso ministério das finanças, o ex-candidato dos camponeses logo revelaria a quais interesses estaria vinculado. A partir deste momento, a aristocracia financeira tornou-se bonapartista e abandonou o Partido da Ordem. “Fould não representava apenas os interesses de Bonaparte na Bolsa, representava também os interesses da Bolsa junto a Bonaparte”, afirmou Marx.

 

Imperador Napoleão III (Foto: arquivo)

A grande imprensa europeia não escondia o seu júbilo diante das opções bonapartistas e apregoava a necessidade de deixar o presidente governar em paz, sem os sobressaltos das ruas ou do parlamento. Um correspondente do jornal londrino The Economist escreveu: “Por toda parte pudemos constatar que a França exige, acima de tudo, tranquilidade. O presidente declara-o na sua mensagem à Assembleia Legislativa; ressoa como eco na tribuna nacional; é afirmado pelos jornais; é proclamado do púlpito; e é demonstrado pelos valores dos títulos públicos à menor perspectiva de desordem e pela sua estabilidade logo que triunfa o poder Executivo”. Às vésperas do golpe de Estado um editorial do mesmo jornal afirmou: “Em todas as Bolsas da Europa reconhece-se agora o presidente como o guardião da ordem” (MARX, 1982: 106-107). Este era o aval da finança internacional para o golpe de Estado.

Novamente com a palavra Marx: “a aristocracia financeira condenava a luta parlamentar do Partido da Ordem contra o poder Executivo como uma perturbação da ordem e festejava cada vitória do presidente como uma vitória da ordem”. Não era apenas a fração financeira da burguesia que assim pensava. “Também a burguesia industrial, em seu fanatismo pela ordem, se irritava com as querelas do partido da ordem no parlamento com o poder Executivo. Depois de seu voto a 18 de janeiro (…), receberam reprimendas públicas procedentes precisamente de seus mandantes dos círculos industriais, nas quais se estigmatizava sobretudo a sua coligação com Montagne como um delito de alta traição contra a ordem (…). Demonstrava que a luta pela defesa do seu interesse público, do seu próprio interesse de classe, do seu poder político, apenas o incomodava e o desgostava como a perturbação dos seus negócios privados” (MARX, 1982:107:108).

Ou seja, o conjunto das frações da burguesia se voltavam contra seus representantes no parlamento e na imprensa. Elas convidavam Bonaparte “a aniquilar parte dela que falava e que escrevia, os seus políticos e os seus literatos, a sua tribuna e a sua imprensa, a fim de poder entregar-se plenamente confiante aos seus negócios privados, sob a proteção de um governo forte e ilimitado” (MARX, 1982:109). O candidato a ditador, mais do que ninguém, compreendeu este clamor e estava disposto a atendê-lo.

O 18 Brumário de Louis Bonaparte

Visando a criar confusão e dividir ainda mais a oposição, Bonaparte enviou à Assembleia Nacional um projeto restabelecendo o sufrágio universal, que havia sido desfigurado pelo Partido da Ordem. Ele foi derrotado por 355 votos contra 348 — mas, desta vez, a socialdemocracia e os republicanos votaram com os bonapartistas. A Assembleia e os partidários da Ordem, novamente, se desmascararam diante da maioria do povo francês e, sem saber, assinaram o seu próprio atestado de óbito.

No dia 2 de dezembro Napoleão mobilizou suas tropas e cercou o Palácio Bourboun onde se reunia a Assembleia Nacional. Os deputados tomam outro prédio e, num ato de desespero, aos gritos de Viva a República!, votaram a destituição do presidente. Poucos levaram a sério aquela bravata e os deputados ali presentes foram conduzidos até as prisões de Mazas, Ham e Vincennes. Locais havia muito conhecidos pelos líderes proletários e democratas-pequeno-burgueses. E “assim terminaram o partido da ordem, a Assembleia Legislativa e a Revolução de Fevereiro”.

Na madrugada anterior, a polícia havia prendido as principais lideranças populares, ligadas aos clubes revolucionários, para se prevenir contra possíveis barricadas. No dia 3 de dezembro as tropas foram recebidas com vaias por alguns burgueses, que estavam nas varandas dos boulevards. Ouviram-se também gritos dispersos a favor da República. A resposta dos soldados foi uma tremenda fuzilaria que ensanguentou os bairros mais nobres. Pela primeira vez, o exército voltava suas armas contra aqueles que sempre procurou proteger: a burguesia.

Satiriza Marx: “E, por fim, os pontífices da ‘religião e da ordem’ veem-se eles mesmos expulsos a pontapés (…), arrancados da cama no meio da noite e do nevoeiro, encafuados em carros celulares, metidos nos cárceres ou enviados para o exílio; o seu templo é arrasado, a sua boca é selada, a sua pena quebrada, a sua lei rasgada em nome da religião, da propriedade, da família e da ordem. Os burgueses fanáticos da ordem são espingardeados nas suas varandas pela soldadesca embriagada, a santidade dos seu lares é profanada, e suas casas são bombardeadas como passatempo, em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem. As fezes da sociedade burguesa formam por fim a sagrada falange da ordem e o herói Krapülinski faz a sua entrada nas Tulherias como o ‘salvador da sociedade’” (MARX, 1982:31).

Em geral, o povo ficou na expectativa e, no fundo, até simpatizou com o fechamento daquela Assembleia Nacional e a exclusão dos deputados do Partido da Ordem, que haviam lhe cassado o direito de voto e eliminado outras conquistas da Revolução de fevereiro.

Bonaparte elaborou uma nova Constituição antidemocrática que lhe dava um mandato de dez anos. Ironicamente, este texto foi aprovado num plebiscito baseado no sufrágio universal. Um ano depois, não contente com sua situação de semiditador, ele se ungiria ao posto de imperador dos franceses, sob o título de Napoleão III.

Em seu O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, escrito meses antes, Marx havia afirmado: “quando o manto imperial finalmente cair sobre os ombros de Louis Bonaparte, a estátua de bronze de Napoleão despencará do alto da coluna de Vendôme”. Esta previsão se realizaria alguns anos mais tarde. A estátua do primeiro Napoleão, que simbolizava as suas conquistas imperiais, seria derrubada do seu pedestal em 1871 pelas mãos dos comunardos de Paris.

* Capítulo do livro Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução editado pela Fundação Mauricio Grabois e Editora Anita Garibaldi.

** Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. Autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia

AGULHON, Maurice. 1848: O aprendizado da República. São Paulo/ Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

BUONICORE, Augusto C. Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução da Fundação Mauricio Grabois e Editora Anita Garibaldi. SP, 2016

EFIMOV N. História Moderna. São Paulo: Novos Rumos, 1986.

HUGO, Victor. Napoleão: o pequeno. São Paulo: Ensaios, 1996.

MARX, Karl. As lutas de classes em França. Lisboa: Avante!, 1984.

____________. O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. Lisboa: Avante!, 1982.

MARX, K. & ENGELS, F. Las revoluciones de 1848. México: Fondo de Cultura Econômica, 1989.