Sergio Moro se fez um expoente da escola “la garantía soy yo”. Suas condutas podem parecer suspeitas, seu senso de oportunidade pode favorecer a uns em prejuízo de outros, as regras gerais do direito podem ser desobedecidas, mas seu status moral o coloca acima desses desvios. Sua conduta será avaliada em nome da missão heroica que delegou a si mesmo, não da regularidade dos meios que usa para persegui-la. Quando praticado por ele, desvio se converte em virtude. Quem consegue ser admitido nessa escola passa a ser regido por um regime particularista, não pelo regime geral.

Lembremos que, anos atrás, quando interpelado pelo STF por seus atos ilegais no processo penal, respondeu assim: “Jamais foi a intenção deste julgador, ao proferir a aludida decisão, provocar tais efeitos e, por eles, solicito desde logo respeitosas escusas a esse Egrégio Supremo Tribunal Federal. O levantamento do sigilo não teve por objetivo gerar fato político-partidário, polêmicas ou conflitos, algo estranho à função jurisdicional (…)”.

O “regime de respeitosas escusas” blindou a conduta de Moro. Foi o que o TRF-4 chamou de “soluções inéditas para casos inéditos”, no voto do desembargador relator Rômulo Pizzolatti numa representação contra o juiz Moro. Aos casos comuns, regras comuns; aos casos particulares, regras particulares e heroísmo.

A reportagem do “Intercept Brasil”, assinada por Glenn Greenwald e publicada nesse domingo, 9 de junho, trouxe luz e enredo ao que muitos observavam à distância: o julgador (Moro) orientava e cooperava com o acusador (força-tarefa da Lava Jato). Aquilo que a modernidade liberal separou em nome da justiça penal, a Lava Jato uniu. Não bastasse a desconfiança que já pairava sobre a operação, que se agravou no período eleitoral e piorou com a conversão do herói em ministro do governo que se beneficiou de seu heroísmo, agora podemos ler até as conversas. A missão de limpar o Brasil não era só retórica de declarações públicas, e permeava as trocas íntimas entre dois de seus principais atores, Moro e Dallagnol.

Houve corrupção de funções no maior processo de combate à corrupção da história do país. Se isso já não era claro, se isso ainda não está claro, quando estará? A filosofia morista, que autoriza o juiz a dobrar o Direito para fazer “o bem”, afetou irremediavemente a credibilidade das decisões tomadas ao longo dos anos da operação. Não fosse o bastante, o Intercept agora nos ajudou a dar um colorido literário ao caso.

Se tudo isso afeta o passado, o que dizer do presente e do futuro? Sergio Moro é hoje um ministro da Justiça reduzido ao tamanho que lhe quis dar o Presidente. Esse tamanho é muito menor do que qualquer um imaginava, mas ele esperava ao menos uma cadeira no Supremo Tribunal Federal como contrapartida. Em tempos de normalidade democrática, os fatos revelados dariam fim a esse sonho e tornariam inviável a continuidade de seu cargo no Ministério. No entanto, os tempos são outros, e o “la garantía soy yo” já se pronunciou: “Não se vislumbra qualquer anormalidade”, em suas palavras.

O combate à corrupção se faz com inteligência institucional, instrumentos sofisticados de controle e transparência. O judiciário, se quiser contribuir, pode fazê-lo por meio de juízes anti-heróis, que entendam a delicadeza de sua função e o valor de seu único capital — a imagem de imparcialidade. Isso já é muito, e é suficiente. Há heroísmo nessa tarefa, um heroísmo que pertence à instituição, não a seus indivíduos. O heroísmo de juízes faz estragos no estado de direito. É falsa virtude.

*Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e professor da USP e colunista da Revista Época

** Texto publicado originalmente no site da Época.