Em um bairro tomado pela gentrificação, o lugar mais anódino pode de repente surgir como uma curiosidade, até como um foco de resistência. Na Freret Street, em New Orleans, esse papel é de uma barbearia. Inaugurada em 1974, época em que um visitante branco que se visse perdido nessa rua trataria de dar no pé rapidinho, a Dennis Barber Shop é agora o “último vestígio de uma comunidade desaparecida”, como diz seu dono, Dennis Sigur, que, apesar da idade respeitável, mantém sua jornada de quinze horas. Do lado esquerdo, um pet shop pode, por US$ 50, dar um banho em seu cãozinho. Em frente, a poucos metros de um bar de vinhos francês e de um salão de beleza, uma escola de ioga oferece “redução do estresse” e “paz de espírito” por US$ 150 ao mês. Um pouco mais acima, na esquina da Jefferson Avenue, foi inaugurada uma Starbucks no fim de 2017. “Eu já não me vejo aqui”, lamenta Sigur. “Quase todos os meus antigos clientes saíram do bairro. Felizmente, muitos ainda vêm à barbearia, às vezes de longe. Aqui é um ponto de encontro para os mais antigos, meio como um bar de amigos, só que sem o álcool.”

Há uns quinze anos, a Freret Street e seus arredores eram um bairro quase exclusivamente negro, como grande parte da cidade. A proporção de afro-americanos em New Orleans caiu de 67% em 2005 para 59% em 2013 – uma tendência que está se acelerando. Muito majoritariamente pobres, os “nativos”, como às vezes eles próprios se qualificam, com uma ponta de ironia – uma maneira também de reivindicar a impressionante marca cultural deixada por eles na alma da cidade –, têm se mudado para as periferias ou para ainda mais longe, expulsos pelo afluxo de uma população branca, jovem e endinheirada que levou os preços às alturas. Em poucos anos, bairros historicamente negros e populares, como Bywater, Marigny, 7ª Ward e Freret, tornaram-se tendencialmente brancos e opulentos.

Em que momento percebemos que o mundo onde vivemos não existe mais? Para Bernard Larose, de 52 anos, que acaba de ter o cabelo tratado pela talentosa tesoura de Sigur, foi em 2013, quando o dono do imóvel de três cômodos onde ele morava aumentou mais uma vez o aluguel, que em quatro anos passou de US$ 600 para US$ 1.100. “No mesmo período, meu salário não aumentou um centavo. Foi então que percebi que este bairro não era mais para mim e que tinha chegado a hora de ir embora.” No mesmo ano, durante uma reunião pública, um grupo de uns cem novos moradores pediu que se aumentassem os impostos locais a fim de custear o recrutamento de agentes de segurança para realizar patrulhas noturnas. A proposta foi rejeitada,1 mas “naquele momento vimos a que ponto a gentrificação tinha remodelado o bairro”, diz Larose. O caloroso boteco na esquina da Bolivar com a Washington, que servia café da manhã a US$ 0,99 aos trabalhadores da vizinhança, sumiu, dando lugar a cafés de comércio justo vendidos a US$ 4 e hambúrgueres gourmet que saem por US$ 12.

Se aqui ele coincide com um sistema de dominação racial profundamente enraizado na história do “Big South”, o fenômeno de recaptura dos centros das cidades pelas classes médias altas afeta a maioria das grandes cidades ocidentais, de Nova York a Berlim, passando por Detroit, Paris, Lisboa e Barcelona. Mas New Orleans é um caso-limite. Enquanto em outros lugares o processo se desenrola de maneira progressiva, por avanços intermitentes ou a longo prazo, aqui ele atingiu a velocidade da luz, em uma escala e com uma brutalidade sem precedentes. Um desastre climático serviu como catalisador: o furacão Katrina, que devastou a cidade há treze anos, matando quase 2 mil pessoas.

 

Tempestade do século, oferta do século

Para os moradores, as inundações que se seguiram à tempestade de 29 de agosto de 2005 continuam sendo um trauma para toda a vida, como mostram as taxas de suicídio registradas desde então (de nove a cada 100 mil habitantes, antes do Katrina, para 26 a cada 100 mil depois).2 Para os formuladores de políticas e as elites econômicas, elas foram providenciais. Ficando três quartos debaixo da água por causa da ruptura dos diques – que, aliás, foi resultado da falta de manutenção produzida pelas economias orçamentárias –, a joia urbana da Louisiana viu-se esvaziada de sua população durante vários meses: a oportunidade perfeita para seus dirigentes terminarem o trabalho de destruição iniciado pelo furacão. Os mortos mal foram tirados da água e já se instaurou o reinado do “liberalismo bombado por esteroides” – para usar a expressão do advogado William B. Quigley –, com todas as características de uma guerra total contra os pobres. Professores foram demitidos, escolas foram privatizadas, o hospital público foi condenado, o aparelho de segurança foi reforçado, o mercado imobiliário foi desregulamentado, os conjuntos habitacionais com aluguéis populares foram demolidos e substituídos por residências de incorporadoras. Ao mesmo tempo que se mimava o setor do turismo com os planos para a construção de um novo aeroporto e de uma miríade de hotéis de luxo, estendeu-se o tapete vermelho para os empresários, cobrindo-os de benefícios fiscais. “Foi necessária a tempestade do século para criar a oportunidade do século. Não a deixemos passar”, exortava a governadora democrata da Louisiana, Kathleen Blanco, menos de duas semanas após o Katrina. Dizer que ela foi ouvida é pouco. A tal ponto que o “renascimento” de New Orleans, muitas vezes elogiado na mídia como um “modelo de sucesso”,3 poderia servir como um manual para todos os líderes mundiais preocupados em fazer o melhor uso possível das tragédias climáticas que teremos pela frente.

A primeira lição que devemos reter a respeito do Katrina é que um cataclismo recai preferencialmente sobre aqueles que não têm nada, ou quase nada. Prova disso são as imagens, exibidas à exaustão na época, dos milhares de sobreviventes que, por não terem carro – portanto, não poderem sair da cidade por conta própria –, amontoaram-se no estádio Superdome e no Centro de Convenções em condições inacreditáveis. “Foi proclamada lei marcial, em todas as esquinas havia policiais e militares apontando armas para nós, mas ninguém para nos ajudar. É algo que nunca vou esquecer”, conta Alfred Marshall, de 60 anos, sindicalista negro que é membro do Stand with Dignity, um coletivo de defesa dos trabalhadores precários. “Um rapaz vizinho meu entrou em uma loja abandonada para conseguir roupas secas e foi baleado, como um cachorro. Nunca conseguimos saber quantas vítimas foram feitas pelas forças da ordem. Sua preocupação número um era proteger a propriedade contra aquilo que chamavam de pilhagem, e não salvar as pessoas que estavam se afogando ou socorrer os sobreviventes.”

Uma vez evacuados e espalhados pelo país, muitos sobreviventes foram confrontados com escolhas dilacerantes. No New York Times, o colunista David Brooks alertou: “Se permitirmos que os pobres voltem a suas antigas casas, New Orleans voltará a ser acabada e disfuncional como antes”.4 Uma montanha de obstáculos foi colocada diante deles. Um dos mais tortuosos foi o Road Home [“Caminho de casa”], programa federal destinado a ajudar os exilados a reconstruir a própria casa. A administração do presidente George W. Bush calculou o montante alocado para os beneficiários com base no valor avaliado de suas propriedades no mercado imobiliário. Isso significa que os donos das opulentas mansões do Garden District foram generosamente indenizados, enquanto as pessoas que viviam em bairros pobres ficaram com as migalhas. Treze anos depois, estima-se que cerca de 100 mil moradores de New Orleans entre os mais pobres (de um total de cerca de 450 mil habitantes antes do furacão) nunca voltaram para casa. “Deixaram claro que eles não eram bem-vindos em sua própria cidade”, lança Marshall, com a cólera que o acompanha há treze anos. “Nossas autoridades usaram o Katrina como um superxerife para expulsar os indesejados – uma maneira de se vingar desta cidade que eles sempre consideraram muito negra e indisciplinada. Quando se fala de gentrificação, o que eu ouço é a palavra ‘eliminação’.”

Nas semanas de caos que se seguiram ao Katrina, o prefeito democrata de New Orleans, Ray Nagin – hoje preso por corrupção –, e a governadora Blanco se uniram em torno de uma causa comum: liquidar a escola pública e os professores. No fim de setembro de 2005, a comissão escolar nomeou, para chefiá-la, um cost-killer [“matador de custos”] de Nova York, o ex-coronel William Roberti, da empresa de consultoria corporativa Alvarez-Marsal. Esta imediatamente descolou um contrato de US$ 16,8 milhões para ajudar a comissão a reorganizar o sistema escolar. Um esquadrão de consultores com suas pastas grafite aterrissou no Vieux Carré, o epicentro turístico da cidade, milagrosamente poupado pelas águas. Graças a seus geradores, os bares do distrito do álcool eram os únicos estabelecimentos comerciais da cidade abertos, enquanto tudo desabava ao seu redor, “com seus clientes completamente amodorrados e marinando sob a própria imundície, a ponto de parecerem figuras de cera abandonadas sob um poste de luz”, como conta o escritor James Lee Burke.5

Foi, portanto, nas mãos desses especialistas em “gerenciamento de crise” que foi colocado o destino das crianças de New Orleans. Sob suas orientações, a comissão escolar aproveitou o fato de não haver alma viva na cidade para anunciar a demissão a seco de todos os seus 7.500 professores. “Quando a notícia foi dada pela mídia local, a maioria dos professores ainda estava muito longe dali. Muitos tomaram conhecimento do fato repentinamente, no pior momento, quando ainda lutavam com o trauma do Katrina e com dificuldades materiais insuperáveis”, destaca o advogado Willie Zanders, que defendeu os “7.500” em uma longa maratona judicial, que começou vencendo, mas acabou com a derrota, em 2013, perante a Suprema Corte da Louisiana.

 

Livrar-se dos professores

Por que os professores? Zanders encolhe os ombros. “Eles usaram como pretexto o estado de desastre natural e o fato de que não havia mais dinheiro nos cofres. No entanto, dez dias após o anúncio da demissão em massa, a Secretaria de Educação do estado da Louisiana recebeu US$ 100 milhões do governo federal para ajudar o retorno dos professores. A ironia é que esse dinheiro acabou recompensando quem os expulsou.” Para o advogado, tratava-se também de neutralizar uma força social potencialmente incômoda: “Exonerando os professores, majoritariamente negros e muitas vezes envolvidos nas lutas de bairro, a cidade e o estado também destruíram seu sindicato, o United Teachers of New Orleans, um dos raros que conseguiram se instalar no deserto sindical que é a Louisiana”.

No entanto, o propósito da operação – a qual Zanders suspeita que já estava na gaveta antes do Katrina, esperando uma oportunidade favorável para vir a público – era trazer ao mundo esta experiência única: a transformação simultânea de quase todas as escolas de uma cidade grande em charter schools. “Escolas fretadas”, ou “contratadas”: esse termo designa um regime recentemente inventado que une o privado (cada escola é dirigida por um operador que se comporta como um líder empresarial) e o público (o acesso às escolas continua gratuito, e o operador privado não pode obter lucro). Inicialmente testado em Nova York, com apoio da Fundação Bill e Melinda Gates, o sistema charter difundiu-se num piscar de olhos para a maioria das grandes cidades dos Estados Unidos, precedido por sua reputação de cura milagrosa para os problemas do fracasso escolar em bairros difíceis.6 Nunca antes ele havia sido aplicado na escala de toda uma metrópole.

Para conhecer melhor esse sistema, batemos à porta da Paul Habans Charter School, uma escola primária em Algiers, na periferia. Na parede da recepção exibe-se em grandes letras vermelhas o lema do estabelecimento: “Perseverança, excelência, coragem, comunidade”. No corredor, uma placa proclama: “Sempre fazemos o melhor para sermos melhores”. Mais adiante: “Somos parte de algo maior que nós mesmos”. Nossos passos ecoam em um silêncio de catedral.

A responsável pelo local nos dá a honra de uma audiência. Branca, jovem, sorridente, Kate Mehok é a diretora-geral do grupo Crescent City Schools, que gere três escolas, incluindo esta. Ela também é de Nova York. “Cada escola recebe US$ 8.500 por criança por ano, pagos pelo estado e pela cidade”, explica a diretora. “Acolhemos todas as crianças sem discriminação e fazemos relatórios sobre nossos resultados. Mas ninguém vem nos dizer que programa devemos seguir e como fazer isso. Desde que os objetivos sejam cumpridos, podemos fazer o que quisermos.”

Para substituir os professores demitidos, os contratantes primeiro se voltaram para a Teach for America, uma organização humanitária que envia novatos recém-formados para territórios em crise, normalmente no exterior: é uma oportunidade de ter uma primeira experiência e depois obter o certificado de professor. Em New Orleans, eles raramente ficam muito tempo. Mehok admite que há “uma rotatividade, como em qualquer empresa”, mas destaca que “é também uma chance de ter professores jovens, que ainda não estão formatados”. E uma oportunidade para seus empregadores, que pagam pessimamente, enquanto recebem eles próprios polpudos salários – US$ 120 mil por ano (no caso de Mehok) até mais de US$ 200 mil no caso de alguns de seus colegas. Como ela organiza o recrutamento? “Da maneira tradicional: publicamos um anúncio na internet, os candidatos se inscrevem, estudamos seu currículo e, se necessário, chamamos para uma entrevista. É claro que estamos livres para demiti-los se eles não tiverem bons resultados, assim como eles estão livres para ir embora se não estiverem satisfeitos.”

Para os estudantes, a “oportunidade” da qual fala a diretora não é tão evidente assim. Ashana Bigard, uma assistente social que dá apoio legal aos pais de alunos em conflito com a escola, acredita que o sucesso político do modelo charter reside precisamente em seu caráter disciplinar. “Eles chamam isso de regra no excuse”, explica. “As crianças têm de andar em fila, como galinhas; algumas escolas onde os estudantes negros são ultramajoritários simplesmente suprimiram a recreação. Crianças em idade escolar são punidas quando se encostam a uma parede, colocam a cabeça na mesa ou usam uma blusa cuja cor não é permitida.” Mas o pior, segundo ela, é a regra que impõe o silêncio no refeitório e durante a sesta: “Para crianças de 4 a 8 anos, uma proibição como essa pode prejudicar o desenvolvimento das emoções sociais”.

As charter schools são uma ferida tão dolorosa para Bigard que ela está pensando em ir embora da cidade onde nasceu. “Quero que meu filho aprenda música na escola, mas aqui isso já não é possível. Era, antes do Katrina: havia aulas de música em todas as escolas; foi nelas que muitos músicos aprenderam a tocar. Hoje isso acabou. Meu tio-avô, Barney Bigard, era um grande clarinetista de jazz, tocou com Duke Ellington e Louis Armstrong, e meu filho não tem nem acesso a um instrumento.”

 

De músicos a motoristas de Uber

Na cidade-mãe dos músicos negros norte-americanos, onde a embriaguez do som toma conta de você a cada passo, a consideração dada aos músicos também diz muito sobre as mudanças em curso. “Sempre foi difícil, mas está cada vez pior”, suspira Bennie Pete, fundador do Hot 8 Brass Band, após um show de levantar defunto. Sua banda é uma das mais famosas da cidade e viaja o mundo inteiro – mas seus membros mal têm onde cair mortos. “Muita gente está vindo para cá com muito dinheiro, eles compram casas e bairros inteiros, forçando os antigos moradores a sair, então as condições também ficam mais difíceis para os músicos”, confidencia. “Antigamente, tocávamos muito nos bares turísticos da Frenchmen Street; agora eles só pagam em gorjeta, o que recusamos. Nunca foi tão difícil viver da nossa música. Para complementar, todos nós temos outros trabalhos – vendedor de loja, motorista de Uber etc.” Outra proeza local: enquanto o número de turistas cresce ano a ano (quase 18 milhões em 2017, um novo recorde), os artistas que eles vêm prestigiar empobrecem a ponto de ter de levá-los de Uber até seu Airbnb.

Em New Orleans, como em muitos outros lugares, a falta de moradia popular é a principal alavanca da gentrificação. Mas aqui ela não resulta apenas dos caprichos de um mercado deixado livre: é fruto de um implacável trabalho de demolição. Entre 2006 e 2014, os quatro principais conjuntos habitacionais que compunham o universo da moradia popular da cidade, totalizando 4.500 unidades habitacionais, foram todos destruídos. Essa ideia também já estava no armário antes do Katrina. Desde a década de 1990, um programa federal aprovado durante a presidência de Bill Clinton subsidia a destruição de moradias sociais e sua substituição por residências para “rendas intermediárias”. Com esse presente para as incorporadoras, a prefeitura de New Orleans já havia começado, desde a virada para o ano 2000, a planejar o desmantelamento dos conjuntos. Mas as tentativas chocavam-se com uma forte resistência. O estado de perplexidade provocado pelo Katrina e o clima de corrida do ouro que tomou conta da elite facilitaram a transformação do plano em ato.

Morador histórico de Calliope, antigo conjunto habitacional de tijolos vermelhos do distrito de Uptown, Marshall nos leva para ver o que resta dele: pequenas casas pré-fabricadas, montadas às pressas e gerenciadas por uma incorporadora do Missouri ligada ao banco Goldman Sachs. A que ele ocupa faz parte da cota de unidades reservadas aos locatários sociais, o que pode ser identificado pela porta da frente pintada de roxo. “A da minha vizinha é amarela, porque ela paga um aluguel mais caro. Somos proibidos de pintá-las. Aliás, tudo é proibido aqui: fazer churrasco, comer do lado de fora com os amigos, tocar música. O regulamento não deixa nem sentar no alpendre, coisa que fazemos nesta cidade há gerações. O objetivo é que cada um fique sozinho dentro de casa. Quanto às plantas…” Ele nos faz tocar com os dedos a coisa esverdeada e raquítica plantada em frente à sua casa. Plástico. “Está vendo isso? Não temos nem o direito de arrancar essa coisa horrenda para cultivar uma planta, uma de verdade.” Regras semelhantes existem nas residências para as pessoas ricas, mas sem produzir o mesmo efeito punitivo.

Marshall sente raiva do que fizeram com seu bairro. Das cerca de 1.500 famílias que viviam em Calliope, devem restar umas sessenta. “Na época, todo mundo se conhecia, tínhamos pomares coletivos onde as pessoas cultivavam frutas. Foi aqui que eu aprendi que, quando alguma coisa não funciona, ela pode ser melhorada coletivamente. Hoje nem conheço meus vizinhos. Ali na frente era um jardim público aonde as pessoas iam tocar juntas; agora é um terreno privado e fechado com cerca. Para chegar ali, é preciso ser sócio de um clube esportivo. Naquele outro lado havia um bar, uma lavanderia e lojas, todos tocados por irmãos negros; agora, só tem essas casinhas de papelão.”

Como organizador de lutas sociais, Marshall enfrenta outra realidade da gentrificação: enquanto, em dez anos, os aluguéis aumentaram entre 50% e 100%, dependendo do bairro, sobretudo por causa da desregulamentação do mercado especulativo das casas de veraneio e da proliferação do Airbnb, o salário mínimo, do qual vive grande parte dos negros na cidade, não aumentou. Ainda está em US$ 7,25 a hora, o nível mais baixo permitido nos Estados Unidos. Dezenas de milhares de trabalhadores têm de se virar com essa miséria, especialmente nos setores da construção e do turismo. Muitos se levantam às 4 ou 5 horas da manhã para chegar ao trabalho e voltam à noite com US$ 60 no bolso, menos o preço do ônibus. “Que vida é essa? Como você acha que a pessoa está quando chega o fim da semana? Fomos afogados pelo Katrina e, no fim das contas, continuamos nos afogando.”

Marshall e seus camaradas da Stand with Dignity estão mobilizados em torno da reivindicação do salário mínimo de US$ 15, mas na Louisiana essa é uma luta dura. Em março de 2018, o Senado local rejeitou uma enésima proposta para elevar o piso legal de US$ 7,25 para US$ 8. Eles preferem se desdobrar para agradar os patrões. Foram muitos os incentivos fiscais criados para estes ao longo dos anos, chegando agora a 80% do valor inicial das taxas e impostos. Em 2016, no momento de deixar o cargo, o governador republicano Bobby Jindal fez a seguinte confissão pública: “A verdade é que criamos um Estado de bem-estar para as empresas”.

Os interessados podem, portanto, relaxar. Jon Atkinson é o cofundador de um fundo de investimento especializado em “empresas inovadoras”. Desde o meio deste ano, ele preside o Idea Village, um grupo de empreendedores techsediado no último andar do Museu de Arte Contemporânea, como que para celebrar a aliança entre dinheiro e bom gosto. Ele nos recebe em um ambiente furiosamente start-up, no meio de um open-space cheio de jovens barbudinhos que saboreiam seu café em copinhos recicláveis. Quando veio da Califórnia para estudar, em 2007, Atkinson, que ganha US$ 300 mil por ano, diz ter encontrado a cidade em pleno “período de caos criador de oportunidades”. Quando perguntamos o que ele quer dizer com isso, ele dispara esta preciosidade conceitual: “O Katrina fez de cada habitante um empreendedor. A necessidade de sobreviver obrigou todo mundo a ser criativo. Isso gravou o espírito empreendedor em nosso DNA”.

“Se você consegue matar esta cidade, você consegue matar qualquer cidade”, dizia um morador de New Orleans em 2006.7 Doze anos depois, no final da Canal Street, uma incorporadora de Massachusetts está transformando o World Trade Center em um gigantesco hotel cinco estrelas. A prefeitura contribuiu copiosamente para o financiamento dessa obra de US$ 465 milhões, onde labutam os invisíveis da gentrificação. Em seu site, a incorporadora explica que o restaurante panorâmico que ocupará os dois últimos andares do prédio oferecerá uma “celebração da cultura afro-americana na Louisiana: a música, a comida e as tradições”.

 

*Olivier Cyran é jornalista e autor, com Julien Brygo, de Boulots de merde! Du cireur au trader. Enquête sur l’utilité et la nuisance sociales des métiers[Empregos de merda! Do sapateiro ao corretor financeiro. Pesquisa sobre a utilidade e o prejuízo social das profissões], La Découverte Poche, Paris, 2018.

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil