Um debate sobre os limites da liberdade de imprensa no Brasil colocou ministros do Supremo Tribunal Federal em lados opostos, na reta final do primeiro turno da eleição presidencial. Em decisões conflitantes, tomadas no intervalo de poucos dias, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux divergiram sobre o direito de a imprensa realizar e publicar entrevistas com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso na sede da Polícia Federal em Curitiba desde abril. O presidente do tribunal, Dias Toffoli, interveio e, no fim, manteve Lula proibido de falar.

Após veículos jornalísticos pedirem ao Supremo autorização para entrevistar o petista, os três ministros proferiram quatro decisões: na sexta-feira (28), Lewandowski permitiu a entrevista. Horas depois, Fux a proibiu. Passado o final de semana, na tarde desta segunda-feira (1º) Lewandowski reafirmou sua decisão original e desautorizou Fux. Toffoli, à noite, restabeleceu a proibição.

Contexto político e jurídico

PRISÃO
Lula foi preso em 7 de abril em razão da condenação em segunda instância a mais de 12 anos de cadeia pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso triplex.

CANDIDATURA
Por ter sido condenado em segunda instância, Lula foi declarado inelegível no dia 1º de setembro, pelo Tribunal Superior Eleitoral, com base na Lei de Ficha Limpa.

INDICAÇÃO
A proibição da candidatura Lula à Presidência ocorreu quando ele liderava as pesquisas. Em 11 de setembro, o PT indicou o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad para concorrer em seu lugar.

AS PROIBIÇÕES
Lula vinha sendo proibido de dar entrevistas desde que foi preso. As decisões eram tomadas pela juíza Carolina Lebbos, responsável pela execução da pena do ex-presidente, e reiteradas após recursos.

As razões para liberar a entrevista

A questão sobre deixar ou não Lula dar entrevistas, então, chegou ao Supremo. Na liminar de sexta-feira (28), em que autoriza o ex-presidente a falar com a imprensa, Lewandowski lembrou que o tribunal já havia definido no passado (ADPF 130/DF) “a ‘plena’ liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”. Lula “não se encontra sob o regime de incomunicabilidade e nem em presídio de segurança máxima”, disse Lewandowski, que afirmou ainda que muitos presos concedem entrevistas à imprensa em todo o país. Por essas razões, o ministro disse sim aos pedidos de entrevistas a Lula que haviam sido feitos pelo jornal Folha de S.Paulo e pelo jornalista Florestan Fernandes.

As razões para proibir a entrevista

Após Lewandowski conceder a liminar que autorizava a imprensa a entrevistar Lula, o Partido Novo entrou com um pedido de suspensão da medida. Em resposta a esse pedido, o ministro Luiz Fux determinou, horas depois, “que o requerido Luiz Inácio Lula da Silva se abstenha de realizar entrevista ou declaração a qualquer meio de comunicação, seja a imprensa ou outro veículo destinado à transmissão de informação para o público em geral.” Fux determinou ainda que “caso qualquer entrevista ou declaração já tenha sido realizada”, haja a “a proibição da divulgação do seu conteúdo por qualquer forma, sob pena da configuração de crime de desobediência”.

A justificativa foi a seguinte: “Há elevado risco de que a divulgação de entrevista com o requerido Luiz Inácio Lula da Silva, que teve seu registro de candidatura indeferido, cause desinformação na véspera do sufrágio, considerando a proximidade do primeiro turno das eleições presidenciais”.

A tréplica de Lewandowski

Nesta segunda-feira (1º), Lewandowski determinou o cumprimento da decisão que havia sido emitida por ele mesmo na sexta-feira (28). Na nova decisão, ele também desautorizou Fux. “A decisão proferida pelo ministro Luiz Fux […] não possui forma ou figura jurídica admissível no direito vigente”, disse Lewandowski. “Seu conteúdo é absolutamente inapto a produzir qualquer efeito no ordenamento legal.” Lewandowski disse que não há relação de subordinação hierárquica entre ele e Fux. Logo, o ministro não tem poder para rever decisão de outro ministro, como o fez nesse caso. Uma das hipóteses para a atitude de Fux é a de que ele tomou para si essa função em substituição ao presidente da corte, Dias Toffoli.

O presidente estava fora de Brasília, mas Fux, que é vice, também estava. O fato é lembrado por Lewandowski. Ele diz que Toffoli estava em São Paulo, “portanto, com poderes jurisdicionais para apreciar a medida, inclusive por meio eletrônico, como é habitual”, e que “o vice-presidente [Fux] também estava fora da capital federal”, mas, mesmo assim, em “uma hora após seu recebimento proferiu a decisão questionada e questionável”. Normalmente, o presidente da corte é o único em posição hierárquica superior aos demais.

A intervenção de Toffoli

Na noite desta segunda-feira (1º), o presidente do tribunal entrou no caso, ao ser instado a se pronunciar pelo ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, a quem a Polícia Federal, que faz a custória de Lula em Curitiba, está submetida. Toffoli mandou a decisão de Fux, de proibir a entrevista, ser cumprida. Disse que, quando o ministro suspendeu a decisão de Lewandowski, ocupava interinamente o cargo de presidente do Supremo. A palavra final será do plenário, formado pelos 11 ministros do tribunal. Não há data para isso acontecer.

A questão da ameaça à liberdade de imprensa

Diversas entidades e advogados especialistas em liberdade de imprensa manifestaram preocupação com a decisão de Fux, e pediram que o Supremo protegesse a atividade jornalística, independentemente de quem seja o político em questão — neste caso, Lula. A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), por exemplo, disse ver “com extrema preocupação o fato de ter saído do Supremo Tribunal Federal, guardião máximo dos direitos estabelecidos na Constituição, uma ordem de censura à imprensa e de restrição à atividade jornalística”.

Em editorial publicado nesta segunda-feira (1º), o jornal Folha de S.Paulo — um dos que pediram ao Supremo para entrevistar Lula — chamou a decisão de Fux de “censura de toga”, que “atropela o ordenamento jurídico e a liberdade de imprensa”. Além dos protestos de entidades preocupadas com a liberdade de imprensa, especialistas em direito também apontaram o que seriam falhas procedimentais contidas na decisão de Fux. Essas falhas é que motivaram Lewandowski a dizer que a manifestação de Fux é de “conteúdo absolutamente inapto”.

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O Nexo fez três perguntas sobre liberdade de expressão e liberdade de imprensa a Guilherme Canela, assessor regional de Comunicação e Informação da Unesco, órgão das Nações Unidas para Educação e Cultura. Como representante de um organismo internacional que também atua no Brasil, Canela não pode se referir especificamente a decisões judiciais que ainda estejam em andamento. Porém, ele explicou o contexto histórico e jurídico mais amplo em que esses direitos são exercidos no mundo. Canela também apresentou dois documentos sobre o tema, dirigidos a juízes que lidam com questões de liberdade de imprensa. Os documentos foram feitos por um grupo de organizações da qual a Unesco fez parte.

O que é liberdade de imprensa e liberdade de expressão?

GUILHERME CANELA: A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece um conceito amplo de liberdade de expressão. Em seu artigo 19, ela diz que todo indivíduo tem o direito à liberdade de opinião, de expressão, e o direito a não ser molestado por conta dessas mesmas opiniões. Três verbos são usados para definir esse direito: o direito de “investigar”, de “receber” informações e opiniões, e de “difundi-las” sem qualquer limitação de fronteiras por qualquer meio de expressão. A liberdade de imprensa é parte desse direito mais amplo. Quando a Declaração Universal estabelece essa forma de definir a liberdade de expressão, ela deixa clara que aí haveria algo especialmente protegido, que é o meio através dos quais a liberdade de expressão é exercida — entre eles, a imprensa, que goza da liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa não é chamada por nome e sobrenome nesse artigo 19, mas há uma derivação dela aí.

Quais os benefícios de uma imprensa livre para a sociedade?

GUILHERME CANELA: Tanto a liberdade de expressão, no sentido mais amplo, quanto a liberdade de imprensa, em particular, têm três grandes funções, de acordo com as cortes internacionais. Primeiro, ela reconhece que nós, seres humanos, somos seres comunicativos. Portanto, proteger a liberdade de comunicar tem uma função de realização própria do ser humano. Ou seja: nós seríamos menos humanos se não pudéssemos nos comunicar, e se essa liberdade não estivesse protegida. Além disso, a liberdade de expressão — e a liberdade de imprensa, em particular — é um direito que ajuda a proteger outros direitos. Então, quando a declaração protege, por exemplo, o direito à educação ou o direito à saúde, se nós não tivéssemos jornalistas da imprensa fazendo os freios e contrapesos, fazendo as checagens necessárias para a implementação das políticas públicas que garantem esses dois direitos que eu dei como exemplo, esses mesmos direitos estariam menos protegidos.

Finalmente, as mesmas cortes sublinham que a existência mesma dos regimes democráticos está fortemente conectada à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa. Portanto, é uma característica das democracias que haja liberdade de imprensa e de expressão. Seremos menos democráticos se essas liberdades estiverem restringidas ou diminuídas. A história dos autoritarismos demonstra que duas instituições são particularmente alvejadas quando um autoritário chega ao poder: a imprensa e o Judiciário.

Quais são os limites legítimos à liberdade de imprensa e de expressão?

GUILHERME CANELA: São aqueles estabelecidos por essa mesma legislação internacional. No caso do sistema internacional de direitos humanos, os limites estão nos artigos 19 e 20 do Pacto de Direitos Civis e Políticos. No caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, estão no artigo 13. Esses limites têm a ver com questões muito específicas, para assegurar o respeito aos direitos e à reputação dos demais e a proteção da segurança nacional, da ordem pública ou da saúde e da moral públicas. Já o artigo 20 proíbe toda propaganda a favor da guerra, assim como a apologia do ódio.

Fora dessas questões específicas, qualquer possibilidade de limitação da liberdade de expressão está vedada pelo sistema internacional de direitos humanos, havendo, evidentemente, possibilidade de responsabilização posterior no caso de eventuais exageros no uso desses direitos. As cortes internacionais estabeleceram um teste tripartido para que uma autoridade judicial possa decidir sobre uma eventual limitação à liberdade de expressão.

Qualquer limitação tem que estar expressa numa lei aprovada formalmente por um corpo democrático. Além disso, tem que ser uma limitação que vise a alcançar objetivos autorizados pelo sistema internacional de direitos humanos. E, em terceiro lugar, essa limitação tem que ser necessária, proporcional e adequada. Se não cumprir com esses três elementos, essa é uma proibição que não passaria, por exemplo, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, para dar um exemplo regional.